Folha de S. Paulo


RICARDO VITA

A iconoclasta Alexandra Loras

Alexandra Loras/Divulgação
Michel Temer, Gisele Bündchen e Donald Trump em retratos editados por Alexandra Loras que serão expostos em SP como objetivo de alertar para o racismo; criticada, ela disse ser negra e ter o direito de se expressar
Michel Temer, Gisele Bündchen e Donald Trump em retratos da exposição 'Pourquoi Pas?'

Quando o pintor americano Kehinde Wiley substituiu Napoleão Bonaparte (1769-1821) por um negro na sua tela inspirada em "Napoleão Cruzando os Alpes", de Jacques-Louis David (1748-1825), a intenção era colocar o negro num lugar onde os imaginários dominantes não o põem habitualmente.

O kimbanguismo, religião africana que propõe um cristianismo através de um prisma negro, tem as mesmas motivações. Tanto Wiley como o kimbanguismo visam a mesma finalidade: re/colocar o negro no centro da História. Vemos nesse retrato uma expressão de poder.

A intenção da obra original foi consolidar um Bonaparte heroico. A Bíblia, outro instrumento de poder, simboliza a dominação filosófica ocidental sobre outros povos, na qual as principais figuras são tidas como brancas. Wiley e o Kimbanguismo questionam-nos, porque não é verdade que a obra do Homem está concluída, dizia Aimé Césaire (1913-2008).

A iconografia ocidental em relação ao negro deve ser revisitada, a começar com as motivações que levaram o papa Nicolau 5º (1397-1455) a autorizar a escravatura em 1454, declarando a guerra contra a África na bula "Romanus Pontifex".

A história do negro no Brasil é feia, sabe-se, apesar da relutância em se reconhecer isso e da insistência no mito da "democracia racial". A ONU já evocou um "racismo estrutural e institucionalizado" no Brasil, e as desigualdades são evidentes na televisão e nas revistas.

Este país foi o último a abolir a escravatura e ainda não conseguiu apagar os seus imaginários herdados da Idade Média. Sua sociedade é composta de uma elite branca e de não-brancos, majoritariamente negros, associados a tudo o que é minorado.

O governo promulgou uma lei em 1945 para incentivar a imigração europeia, com a intenção de preservar e desenvolver, na composição da população, as características europeias. A supremacia branca não é um mito no Brasil, é uma realidade.

A exposição "Pourquoi Pas?" ("Por que não?"), em que personalidades brancas são retratadas como negros, interpela essa sociedade, e será preciso mais de uma Alexandra Loras para questionar a sua falsa paz, que tem adiado o debate sobre a questão. Loras é uma iconoclasta, como Wiley e o kimbanguismo. O mundo mudou, e o momento é oportuno para o Brasil se descongelar de onde ficou congelado na Idade Média.

Porém, entende-se que alguns brasileiros tenham associado a iniciativa ao blackface, essa caricatura que traz na memória feridas mal cicatrizadas e que perturba as dignidades ofendidas. Mas a intenção aqui é outra. Loras escolheu figuras que encarnam o poder. É a função da arte. Interpelar. Questionar. "Pourquoi Pas?" pretende pôr no centro da vida humana outras iconografias porque a sua intenção é de revelar uma humanidade maior.

O negro já não é mais folclórico como o mundo branco o tinha criado. O mundo já não é mais todo branco e nunca mais o voltará a ser. A África, na sua afirmação, pedirá contas ao Brasil quando saberá da perfídia e da hipocrisia na sua relação com este país. Não poderá deixar continuar as discriminações contra a sua maior diáspora. É seu dever moral.

A África olhará para dentro dos corações de seus proclamados amigos, que vão para Angola vender telenovelas que gabam a supremacia branca. Será confrontada com a necessidade de rever a sua relação com o Brasil, e nada a impedirá de acabar com ela se for necessário.

Fazer um bom diagnóstico para o Brasil significa tomar consciência das consequências. Os negros do mundo vão se mobilizar contra toda injustiça que for feita a qualquer um deles. Como os judeus, saberão evitar que a história se repita e abominarão quem tentar o contrário.

O Brasil ainda não sabe que a história do seu negro é a história do Brasil. Ela não é bonita, mas deve ser contada, honesta e verdadeiramente, assumida e superada. Por isso, "Pourquoi Pas?" ousou.

RICARDO VITA é cofundador e vice-presidente do instituto République et Diversité, que promove a diversidade na França

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