Folha de S. Paulo


ODILO PEDRO SCHERER

Jesus, Maria e José: migrantes e refugiados

Navesh Chitrakar/Reuters
Crianças rohingya são vistas em um campo de refugiados em Balu Khali, perto de Cox's Bazar, em Bangladesh, nesta quinta
Crianças rohingyas são vistas em um campo de refugiados em Bangladesh

A história do nascimento de Jesus foi semelhante à de tantos filhos de migrantes e exilados de hoje. Os pais, Maria e José, viviam na Palestina, dominada pelo Império Romano. Ela estava grávida, prestes a dar à luz, quando um decreto do imperador César Augusto ordenou o recenseamento geral dos súditos: todos deviam alistar-se na cidade da própria origem.

Sabe-se lá quais eram as intenções do augusto César, se queria apenas conhecer o número de cidadãos sob o seu império ou controlar melhor os tributos. Talvez saber com quantos soldados podia contar para novas conquistas, ou para sufocar insurreições?

Ordens imperiais não se discutem. Também Maria e José partiram de Nazaré para Belém, na Judeia, de onde eram originários. Não ficava tão perto, e eram precisos vários dias de penosa caminhada, ou no lombo de um jumento. Nem pensar nos incômodos e riscos da viagem, ou no frio do inverno. Mas não eram os únicos, pois o povo migrava, já naquela época.

O próprio poder dominante provocava migrações forçadas, deportações e limpezas étnicas. Já imaginamos a movimentação pelas estradas, aldeias e hospedarias por aqueles dias?!

Finalmente chegaram a Belém, felizes mas exaustos e apreensivos, pois o menino dava sinais de que queria nascer. As poucas hospedarias estavam cheias e, por mais que batessem às portas, ninguém abriu. São Lucas observa, simplesmente: "não havia lugar para eles na hospedaria" (Lc 2,7).

E Maria deu à luz fora da cidade, num abrigo para animais. Humildes pastores dos arredores ficaram maravilhados com o que viam e ouviam a respeito do recém-nascido. A escuridão da noite se iluminou, e o céu mandou seus mensageiros para anunciarem que esse menino era o filho do Altíssimo Deus, e seu nascimento traria grande alegria para todo o povo!

Um coro festivo de vozes celestiais cantava glórias a Deus e desejava paz aos homens de boa vontade. Maria e José contemplavam, em profundo silêncio, a cena que os envolvia. As coisas sublimes não carecem de muitas palavras. Melhor, o silêncio, as melodias, a poesia.

Jesus veio ao mundo como um migrante e experimentou a rejeição e as agruras dos milhões de homens, mulheres e crianças migrantes dos nossos dias, enxotados de suas casas e de suas terras por guerras, perseguições e projetos de comerciantes poderosos de petróleo ou de armas. Outros são ameaçados por fanáticos supostamente religiosos ou por políticos obcecados por suas ideologias.

Milhões de Marias, Josés e Jesus são empurrados pela fome, a miséria e a violência para o deserto, o mar, as estradas, contra muros e cercas de fronteiras...

Césares do nosso tempo sacrificam sem piedade a pobre gente, que só quer trabalhar e viver em paz; inescrupulosos mercadores de escravos exploram, até o limite do suportável, homens, mulheres e crianças e os descarregam nas fronteiras de algum país ou abandonam no meio do mar.

Para José e Maria, a paz do Natal durou pouco. O rei Herodes ficou muito preocupado com aquilo que se dizia do menino nascido em Belém. Informantes e bajuladores o advertiam sobre o risco de deixar crescer esse suposto "rei dos judeus", que acabara de nascer.

Informado que o ciumento Herodes queria matar o menino, para não correr nenhum risco de perder o trono para ele no futuro, o bom José, mais que depressa, tomou o pequeno Jesus e sua mãe e fugiu para o Egito.

Migrante forçado para salvar a vida, e em precárias condições, ele teve que enfrentar mais uma longa viagem, atravessar o deserto e a fronteira, viver como exilado, achar um abrigo e um trabalho para sustentar a família.

A mais santa das famílias viveu o drama de milhões de migrantes e refugiados dos nossos dias. Neste Natal, fico pensando em tantas pessoas e famílias que vivem hoje em condições semelhantes.

CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo

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