Folha de S. Paulo


RONALDO LARANJEIRA

A segunda reforma psiquiátrica

Zanone Fraissat/Folhapress
SAO PAULO/SP-BRASIL,27/03/14 - Festa de Aniversario coletico no CAPS da vila Mateus, com atividades de musicoterapia, artesanatos e pintura. unidade tem 10 leitos de internacao e 5 leitos de desintoxicacao.(Foto: Zanone Fraissat / COTIDIANO) ***EXCLUSIVO***
Festa de aniversário no Caps da Vila Mateus, em São Paulo

A reformulação da política de saúde mental brasileira, aprovada em colegiado tripartite, isto é, pelos gestores federal, estaduais e municipais, é um avanço, não um retrocesso.

Na prática, ela corrige uma distorção criada nos últimos 16 anos. A reforma psiquiátrica de 2001 foi um marco da luta contra os manicômios, que segregavam os doentes mentais da sociedade sem tratá-los e os punha em condições muitas vezes sub-humanas. Ninguém quer essa triste realidade de volta.

Mas, ao determinar o fechamento indiscriminado de leitos psiquiátricos na rede pública, criou-se um vazio assistencial, uma lacuna. Reduziu-se drasticamente a assistência especializada aos doentes mentais em surto, que põem em risco suas vidas e de terceiros, bem como aos quadros mais graves e agudos. Para esses pacientes, o tratamento ambulatorial pode ser insuficiente.

Há quase cinco anos o Estado de São Paulo implantou uma experiência ousada e inovadora, ao estruturar uma rede de atenção hierarquizada para combater a dependência em álcool e drogas, por meio do Programa Recomeço.

Essa rede contempla, além do acompanhamento dos dependentes em Caps Ad (Centros de Atenção Psicossocial "" Álcool e Drogas), convênios com clínicas psiquiátricas e comunidades terapêuticas para atender aos quadros mais graves. Foram abertos cerca de três mil novos leitos, em serviços próprios ou contratados, financiados exclusivamente pelo tesouro estadual.

A nova política de saúde mental do país, aprovada em comum acordo com Estados e municípios, converge com o modelo adotado por São Paulo nos casos de drogadição, englobando toda a psiquiatria.

Mas é importante destacar que não se trata de negar a reforma psiquiátrica, mas de promover uma segunda reforma, complementando a anterior, uma vez que a rede de atenção psicossocial não será negligenciada. Pelo contrário. A reformulação prevê a expansão dos serviços já existentes, bem como a criação de Caps 24 horas em regiões conhecidas como "cracolândias".

Alguns pontos noticiados sobre a nova política de saúde mental precisam ser esclarecidos. O primeiro é que não haverá, de forma alguma, incentivo à institucionalização de pacientes.

A proposta é garantir leitos psiquiátricos suficientes para assegurar assistência a quem precisa, mas, ao mesmo tempo, dar mais potência ao processo de desinstitucionalização dos pacientes moradores de hospitais psiquiátricos pela ampliação da oferta de serviços residenciais terapêuticos.

Ao mesmo tempo, hospitais psiquiátricos serão qualificados para internação de pacientes com transtornos mentais agudizados, deixando, assim, de serem locais "fechados", como ocorria no passado.

Outra questão importante: a expansão de leitos psiquiátricos em hospitais gerais se dará por meio da criação de enfermarias específicas, com presença obrigatória de equipe multiprofissional especializada em saúde mental.

Haverá, ainda, aumento do número de vagas e da qualidade da atenção prestada pelas comunidades terapêuticas, bem como controle permanente dessas instituições para que os direitos dos pacientes não sejam violados.

Está mais do que na hora de a saúde mental ser tratada no Brasil sem ranços ideológicos, mas com estrito foco na recuperação do paciente e na oferta de uma rede assistencial resolutiva e mais eficaz.

RONALDO LARANJEIRA, psiquiatra, é coordenador do Programa Recomeço e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Endereço da página:

Links no texto: