Folha de S. Paulo


editorial

Dúvidas manicomiais

Eduardo Knapp - 18.jan.2017/Folhapress
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais

O governo Michel Temer (MDB) iniciou uma minirreforma da política de saúde mental, tema que desperta opiniões polarizadas. Herdeiros da campanha antimanicômios já se levantam contra a alegada reedição da ênfase em internações.

As mudanças, aprovadas por Ministério da Saúde, Estados e municípios, ainda suscitam dúvidas sobre os reais propósitos. Seria conveniente um debate mais amplo sobre pontos questionáveis.

O objetivo declarado é fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial, que reúne várias unidades de saúde para tratar problemas mentais. Pela meritória reforma psiquiátrica de 2001, a rede se pauta pelo abandono progressivo do modelo baseado em internação.

Parece positiva, assim, a decisão de habilitar mais 200 Serviços Residenciais Terapêuticos. São casas em que o paciente que saiu do hospital, mas não tem estrutura familiar, conta com a supervisão de uma equipe multidisciplinar. Existem hoje 498 delas.

A base do sistema são os Centros de Atenção Psicossocial, que acompanham o doente mental sem afastá-lo da família. Há 2.471 deles, número ainda insuficiente.

Parte do problema reside na rápida redução de leitos psiquiátricos no país. Levantamento do Conselho Federal de Medicina aponta queda de 39% de 2005 a 2016.

Há quem defenda, no ministério e nas secretarias de saúde, com aval da Associação Brasileira de Psiquiatria, que a diminuição foi excessiva. Ela teria deixado desassistida parte dos casos mais graves, como pessoas em surto psicótico.

Para enfrentar o que entende como deficit, a pasta elevou o limite autorizado de leitos da especialidade em hospitais gerais e estancou a redução de vagas nos hospitais psiquiátricos (embora tenha destacado que vetava sua ampliação).

Em paralelo, elevou a remuneração do SUS para internações, em contradição com o que recomenda a atual política pública de saúde mental. Para os defensores desta, a providência incentivaria a retomada do velho modelo.

Não menos controverso é o fortalecimento do apoio estatal às comunidades terapêuticas, organizações civis não raro ligadas a igrejas. Pesam sobre várias delas denúncias de abusos, como retenção forçada e doutrinação religiosa.

O atendimento a doentes mentais sem dúvida deve ser aperfeiçoado. Não se pode, todavia, transformar essa discussão crucial em mais uma batalha caricata entre "esquerda" (psicólogos e adversários de manicômios) e "direita" (psiquiatras e adeptos da internação) —ou quimeras equivalentes.

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