Folha de S. Paulo


SERGIO REZENDE

O almirante e a bomba atômica

Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 01/11/2017; Retrato do almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva,
O almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear

O Brasil detém o domínio do ciclo completo da energia nuclear, cuja etapa mais importante é o enriquecimento de urânio para que ele se torne o combustível usado em usinas nucleares. Poucos países do mundo dominam esse processo.

Uma das tecnologias de enriquecimento utiliza ultracentrífugas para separar os isótopos de urânio contidos no minério, com base em suas diferentes massas.

A centrífuga brasileira é uma das mais eficientes do mundo, pois emprega materiais e mecanismos de acionamento altamente inovadores. Por isso, seus segredos são cobiçados por outros países. É das centrífugas da estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil) que sai parte do urânio que serve de combustível para as usinas nucleares de Angra 1 e 2.

Devemos nossa tecnologia, em boa parte, à visão, competência e dedicação de dois almirantes: Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), fundador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, e Othon Luiz Pinheiro da Silva, brilhante engenheiro que liderou o programa nuclear da Marinha.

Foi esse programa, secreto por décadas, que permitiu ao Brasil desenvolver toda a cadeia tecnológica para produzir combustível nuclear a partir do minério de urânio.

Por suas iniciativas no programa nuclear, Álvaro Alberto –como era conhecido– foi perseguido e detratado por pessoas que, à época, se alinhavam com a política dos EUA para o Brasil —entenda-se, não permitir que uma nação do Terceiro Mundo dominasse o ciclo completo da tecnologia nuclear, que deveria ficar restrita a poucas nações.

Hoje, parece que processo de perseguição semelhante se passa com Othon. Ao ir para a reserva (1994), montou uma consultoria que elaborou um estudo para uma grande empresa conseguir contrato com a Eletronuclear para a construção de Angra 3. O contrato foi assinado antes de Othon assumir a presidência da Eletronuclear, em 2005.

Há dois anos, ele foi alvo da Lava Jato, cujos procuradores concluíram que o pagamento que recebeu pelo estudo foi propina. Condenado a 43 anos de prisão, cumpriu quase dois e foi solto há semanas por meio de um habeas corpus, como relatado por ele em entrevista a esta Folha (7/11).

Em resposta um pouco fora do contexto, Othon afirma que o Brasil poderia fazer uma bomba atômica em quatro meses.

Essa afirmação foi o pretexto para que, dois dias depois, o senhor Matias Spektor publicasse, na mesma Folha, o artigo "Almirante condenado na Lava Jato usa informação falsa sobre bomba nuclear. O texto, em tom acusatório a Othon, alega que é falsa a afirmação sobre a capacidade brasileira de fazer um artefato nuclear em poucos meses.

O colunista, aparentemente, ignora que o gás de urânio enriquecido para usinas, caso injetado várias vezes nas ultracentrífugas, pode ter níveis de enriquecimento para aplicações bélicas. E bastam uns 20 a 50 kg de urânio enriquecido a níveis altos para fabricar uma bomba atômica. Mais: é perfeitamente possível fazer isso em pouco tempo, como afirmou o almirante Othon.

Felizmente, o Brasil fez a opção de não fabricar a bomba e é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o qual permite que inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica visitem e monitorem (por câmeras) as instalações da INB para verificar todo o processo de enriquecimento.

Mas o Brasil, por questões estratégicas, não permite que esses técnicos tenham acesso direto aos segredos tecnológicos das centrífugas desenvolvidas sob a liderança de Othon, preservando, assim, um desenvolvimento que nos custou décadas de trabalho de cientistas e engenheiros.

E, talvez, seja essa opção estratégica do Estado brasileiro que tenha indisposto Othon com forças que, mais uma vez, se alinham com interesses estrangeiros, como ocorreu com Álvaro Alberto.

É preciso serenidade no julgamento desse brilhante engenheiro que prestou um enorme serviço ao país, como também alguma perspicácia e astúcia políticas para perceber o que ocorre nos bastidores do jogo geopolítico cevado por interesses econômicos.

SERGIO M. REZENDE é professor-titular de física da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pelo Massachusetts Institute of Technology; foi ministro da Ciência e Tecnologia (2005-2010, governo Lula)

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