Folha de S. Paulo


RICARDO LEWANDOWSKI

Reflexões sobre a intolerância

Andre Borges/Folhapress
BRASLIA, DF, BRASIL 10-04-2013 12h30: Faixa colocada em frente ao Congresso Nacional
Protesto em frente ao Congresso Nacional, em 2013, com os dizeres "Intolerância Não"

Vivemos hoje em um mundo que nos causa profunda perplexidade em face da crescente perda de princípios e parâmetros em todos os planos da vida. Alguns atribuem esse assombro à chamada "pós-modernidade", expressão que ainda aguarda uma melhor definição por parte dos estudiosos.

Não obstante, ela identifica um novo modo de ser das pessoas, radicalmente distinto daquele que prevaleceu a partir da Era Moderna, surgida com o Iluminismo, por volta século 17, perdurando até meados da centúria passada.

O espírito moderno tinha como nota distintiva a crença na razão e na ciência como vetor do progresso da humanidade. Já a atitude pós-moderna caracteriza-se por uma profunda desconfiança com relação a tudo e a todos e um permanente ceticismo quanto às verdades comumente aceitas.

As epistemologias que, desde os albores do modernismo, buscavam explicações abrangentes e sistemáticas para o universo, o homem e a sociedade passaram a ser sumariamente descartadas e substituídas por visões fragmentárias e efêmeras da realidade.

As pessoas deixaram de ter as comunidades afetivas, culturais, étnicas ou territoriais como pontos de referência, substituindo-as pelo individualismo, hedonismo, consumismo e niilismo.

As relações sociais, em consequência, passaram a se caracterizar pela impessoalidade, fugacidade, fragilidade e ambiguidade.

Para certos observadores, tais transformações resultam dos efeitos perversos do processo de globalização, que, além de acentuar a divisão entre ricos e pobres, ensejou a adoção acrítica de valores alienígenas, artificiais e transitórios, não raro eivados de rancor e preconceito.

Na verdade, estes não passam de meros modismos, difundidos quase instantaneamente pela mídia e internet, os quais, mal absorvidos, são logo descartados e substituídos por outros.

O próprio Estado-nação —principal centro de referência dos postulados humanistas, arduamente construídos pela civilização ocidental— também se encontra profundamente abalado diante dessa internacionalização desordenada, mostrando-se cada vez mais incapaz de proporcionar um mínimo de bem-estar aos seus jurisdicionados.

Em tal contexto, o pensador camaronês Achille Mbembe vaticina que as desigualdades tenderão a se aprofundar por toda a parte, fazendo com que a velha luta de classes assuma, cada vez mais, a forma de racismo, sexismo, chauvinismo e nacionalismo.

O combate ao terrorismo, por sua vez, poderá servir de pretexto para desencadear uma batalha de extermínio contra povos e crenças, enfim, contra tudo aquilo que pareça diferente.

Prevê ainda o surgimento de uma espécie de neodarwinismo social, sob o qual reaparecerá o apartheid, travestido de distintos aspectos, dando azo a novos separatismos, à construção de mais muros, à militarização de fronteiras e ao aumento da repressão policial interna com graves danos à democracia liberal.

Ainda há tempo de evitarmos a barbárie anunciada, desde que empreendamos um esforço comum para substituir esse clima de ódio e intolerância —o qual se alastra como um vírus— por uma cultura de paz e fraternidade.

RICARDO LEWANDOWSKI é professor de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ministro do Supremo Tribunal Federal

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