Folha de S. Paulo


VIRGILIO VIANA

Garimpo na Amazônia: uma perspectiva internacional

Raolin Magalhaes/Folhapress
Mais de 3 mil pessoas promovem protesto em frente ao predio da Funai em Humaitá (AM), após três pessoas que desaparecerem dentro de reserva indígena. Após confronto com a polícia, os manifestantes incendiaram prédios da Funai e Funasa. (Foto: Raolin Magalhaes/Folhapress) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Prédio da Funai incendiado após protestos em Humaitá, no Amazonas

Os recentes acontecimentos em Humaitá (AM), com queima de prédios do Ibama e ICMBio e de embarcações, requerem uma reflexão aprofundada de um problema seriíssimo e podem ser vistos como uma ótima oportunidade para enfrentá-lo de maneira apropriada. A meu ver, o garimpo é um dos problemas ambientais mais sérios da Amazônia, ficando atrás apenas do desmatamento e da degradação florestal.

Do ponto de vista internacional, até pouco tempo atrás, o garimpo era um tema de polícia e relegado a segundo plano. Mais recentemente, diante da constatação do fracasso da maioria das políticas públicas, da gravidade do problema e do seu continuo crescimento,vem ganhando destaque. A ONU, Pnud, Pnuma, BID e Banco Mundial têm iniciativas importantes em andamento.

Diversas universidades possuem programas de pesquisa sobre o assunto. Várias organizações internacionais, como o IIED, vêm desenvolvendo projetos voltados para o tema da produção mineral artesanal. O termo atualmente utilizado é "mineração artesanal e de pequena escala". Existe, portanto, muito conhecimento já acumulado sobre o tema.

Os números são impressionantes: em todo o mundo são mais de 25 milhões de pessoas que trabalham diretamente com a mineração artesanal e de pequena escala. O número de indiretamente envolvidos é de 5 a 10 vezes maior.

Os problemas variam muito de caso a caso, mas incluem: poluição dos rios (especialmente por mercúrio, que contamina peixes e que é muito prejudicial à saúde humana); degradação dos leitos e das margens dos rios (por escavação mecânica); trabalho insalubre; prostituição (inclusive infantil); violência; relação com ações criminosas (tráfico de drogas etc); e financiamento de atividades ilegais (desmatamento e grilagem).

Vale lembrar que não se trata de um processo uniforme. Ao contrário, os problemas variam muito entre diferentes locais e, num mesmo local, ao longo do tempo. Não cabem, portanto, soluções simplistas e generalistas.

Ainda que existam formas de categorizar a mineração artesanal e de pequena escala, é necessário tratar cada caso de forma específica na busca de soluções apropriadas.

Um dos consensos do debate internacional é que os governos têm dado muito pouca ênfase para a construção de soluções negociadas. A tendência é uma abordagem mais simplista, tratando tudo como caso de polícia. Ao colocar todas as atividades de produção irregular de ouro num único rótulo, de garimpo ilegal, todas as possíveis soluções para atenuar e resolver os problemas são imediatamente paralisadas.

O caso do Rio Madeira é exemplar. Até 2004, as políticas governamentais se resumiam à repressão. A partir de 2005, foi dado início a um processo de diálogo. Nesse processo, que envolveu estudos de campo, verificou-se que havia dois grupos de garimpeiros.

O primeiro, mais numeroso, eram ribeirinhos que aproveitam o período da seca para produzir ouro em pequenas balsas. Famílias inteiras se mudam para as balsas e passam ali alguns meses, para depois voltarem para suas atividades de extrativismo e agricultura nas margens do Rio Madeira. Nesse diálogo foi cunhado o termo de "extrativista mineral".

O extrativista mineral se diferencia profundamente do outro grupo, que é composto por pessoas de fora do mundo ribeirinho. São operações comerciais com dois tipos de financiadores: (i) investidores originários dos municípios da região (comerciantes e outros empresários locais) e (ii) garimpeiros de Rondônia, Pará e outros Estados.

Enquanto o primeiro grupo de investidores é oportunístico e pacífico, o segundo grupo é frequentemente violento e muitas vezes associado com tráfico de drogas, prostituição etc.

O sucesso da política estadual implantado em 2005 foi baseado no tratamento diferenciado para os diferentes agentes e no diálogo. Foi construído um processo no qual havia algumas condições para a formalização da atividade: (i) curso de educação ambiental com certificado e carteira individual (ênfase para o problema do mercúrio e a proteção de matas ciliares), (ii) uso obrigatório do cadinho (que recupera até 95% do mercúrio), (iii) uso obrigatório de recipiente para receber o rejeito contaminado com mercúrio, (iv) construção de reservatórios em terra para receber os rejeitos, (v) compromisso de todos contra a prostituição, (v) limitação da potência máxima dos motores, dentre outras regras.

Vale notar que as regras eram todas simples e práticas; de possível cumprimento. Essas regras deram conforto ao Ipaam para licenciar as atividades de extrativismo mineral, com todas as salvaguardas pré-definidas. Tudo isso foi acordado em processos de diálogo abertos e transparentes, com a participação das prefeituras municipais e de órgãos federais (Ibama, CPRM, DNPM, MME etc).

Em função de uma série de fatores, a qualidade da implementação das políticas estaduais no Amazonas vem decaindo desde o final da década passada.

O que era uma história com avanços emblemáticos e paradigmáticos foi se tornando um descaminho. Voltou a ser dada uma abordagem policial, em detrimento do processo de diálogo e busca de soluções práticas. A ação articulada com os órgãos federais e municipais foi substituída pela falta de diálogo e coordenação.

As cenas de Humaitá, que chocaram a todos, fazem parte de uma tragédia anunciada. É necessário resgatar os avanços da década passada e reconstruir uma política sensata, eficiente e eficaz.

É necessário diferenciar os grupos e dar tratamentos diferenciados. Ao jogarem todos na vala comum da ilegalidade, os pequenos extrativistas minerais viram objeto de uso como massa de manobra pelos grandes garimpeiros de outros Estados e empresários do garimpo.

É importante que o calor dos ânimos acirrados pelos conflitos de Humaitá não resulte em soluções que enfraqueçam a gestão ambiental. Ao contrário, cabe aos órgãos responsáveis pela gestão ambiental da Amazônia um papel de liderança na construção de soluções para esse que é um dos maiores problemas ambientais da região.

A experiência internacional tem que ser usada para melhor qualificar as politicas públicas. As lições aprendidas na década passada devem ser resgatadas para a retomada de um processo de gestão ambiental sólido e eficaz.

A recém iniciada administração estadual tem uma excelente oportunidade de iniciar os seus trabalhos com o pé direito. A cooperação com os demais países amazônicos, que enfrentam problemas muito semelhantes, é essencial.

VIRGILIO VIANA, graduado em engenharia florestal pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), é PhD em biologia da evolução pela Universidade Harvard e fez pós-doutorado em desenvolvimento sustentável na Universidade da Flórida

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