Folha de S. Paulo


JOSÉ IGNACIO TORREBLANCA

Um passo inevitável e justificado

Emilio Morenatti/Associated Press
Nationalist activists march during a mass rally against Catalonia's declaration of independence, in Barcelona, Spain, Sunday, Oct. 29, 2017. Thousands of opponents of independence for Catalonia held the rally on one of the city's main avenues after one of the country's most tumultuous days in decades. (AP Photo/Emilio Morenatti) ORG XMIT: XAF105
Milhares protestam contra declaração de independência da Catalunha

A atuação do governo da Espanha em relação à Catalunha era inevitável e necessária. Fazia tempo que a situação havia passado do admissível. O Tribunal Constitucional do país anulara as leis do plebiscito e da transição para a independência, aprovadas pelo Parlamento catalão no início de setembro, mas a maioria independentista da Casa e do governo local ignorou as anulações e realizou a consulta ilegal em 1° de outubro.

O plebiscito de autodeterminação era pretensamente vinculante (o Parlamento deveria aceitar seu resultado), apesar de carecer de censo eleitoral, resultados verificáveis e de um percentual mínimo de participação da população.

Desde a consulta, a sociedade catalã estava rompida e à beira de um enfrentamento. Mais de mil empresas, incluindo os principais bancos, estavam saindo da Catalunha. Ademais, o governo e o Parlamento já estavam claramente fora da lei e da Constituição, e a força policial da região, os Mossos d'Esquadra, haviam deixado de obedecer às ordens dos tribunais de Justiça.

Sobreveio, então, a declaração unilateral de independência, em 27 de outubro, por parte de 70 deputados do Parlamento regional, o que tornou inevitável a intervenção. Nessas circunstâncias, o governo central pôs em marcha o artigo 155 da Constituição, previsto especificamente para situações como a atual, isto é, quando uma autoridade regional desobedece à Constituição ou aos tribunais.

Trata-se de um artigo idêntico aos que existem em muitas Constituições federais, como a da Alemanha (artigo 37), e que permite, como foi o caso na Espanha, avisar as autoridades regionais de sua desobediência, dar-lhes prazo para retificação e, se continuam a descumprir a lei, tomar as medidas necessárias para que se restaure a legalidade.

No mesmo dia 27, o Senado espanhol aprovou, por 214 votos a favor, 47 contra e 1 abstenção, destituir o governo regional, dissolver o Parlamento catalão e convocar eleições naquela comunidade autônoma para 21 de dezembro.

Dessa maneira, os catalães terão a oportunidade de se expressar livremente, sem coação, e de eleger o governo que queiram para os próximos quatro anos.

Essas medidas não só contaram com o apoio do governista Partido Popular (conservador), mas também com o da principal sigla de oposição (o socialista PSOE) e do liberal Cidadãos, de centro. Esses três partidos obtiveram 16,5 milhões de votos nas eleições gerais de junho de 2015, ou 68,7% dos sufrágios.

Além disso, como se viu nas duas grandes manifestações ocorridas em Barcelona, uma parte importantíssima da população —a chamada "maioria silenciosa"— se mobilizou, por fim, para defender seus direitos e liberdades diante de um projeto secessionista construído à base de mentiras e falsidades, de modo semelhante ao "brexit" ou à campanha de Donald Trump nos EUA.

A democracia espanhola atuou com prudência, mesura e proporcionalidade para restaurar a ordem constitucional e impedir que uma minoria independentista impusesse à maioria dos catalães uma saída forçosa da União Europeia e uma perda sem paralelos de direitos e bem-estar.

A Espanha o fez, aliás, com apoio dos governos e instituições ligados à UE, preocupados com a repercussão que uma vitória do nacionalismo populista poderia ter sobre o resto do território europeu.

O problema catalão não está resolvido, mas por fim a democracia tomou a iniciativa, e a Constituição volta a vigorar na Catalunha.

JOSÉ IGNACIO TORREBLANCA é doutor em ciência política e editor de Opinião do jornal "El País"

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