Folha de S. Paulo


RICARDO LEWANDOWSKI

Moral, moralismo e direito

Carolina Antunes/Xinhua
(160912) -- BRASILIA, septiembre 12, 2016 (Xinhua) -- Imagen cedida por Presidencia de Brasil, del presidente brasileño, Michel Temer (d), acompañado por el ministro Ricardo Lewandowski (i), participando durante la sesión solemne de posesión de los ministros Cármen Lúcia y Dias Toffoli en los cargos de presidente y vicepresidente, respectivamente, del Supremo Tribunal Federal (STF) y del Consejo Nacional de Justicia, en Brasilia, Brasil, el 12 de septiembre de 2016. (Xinhua/Carolina Antunes/Presidencia de Brasil) (da) (vf)
O ministro do STF Ricardo Lewandowski

Existe uma clara linha divisória, nem sempre percebida nitidamente, entre a moral e o moralismo. Aquela, grosso modo, revela um conjunto de valores e princípios que deve reger a conduta humana, variando no espaço e no tempo.

Todas as sociedades, em algum momento de sua história, adotaram determinadas normas de comportamento, não raro resultantes de práticas multisseculares, as quais reputaram essenciais para a convivência harmônica de seus integrantes.

Embora destituída de sanções materiais, a moral corresponde a um código de procedimentos que sujeita os transgressores à reprovação, velada ou explícita, dos membros da coletividade a que pertencem, acarretando, por vezes, a própria exclusão dos recalcitrantes de seu convívio.

Já o moralismo representa uma espécie de patologia da moral. Enquanto nesta há um certo consenso das pessoas no tocante à distinção entre o certo e o errado, no moralismo alguns poucos buscam impor aos outros seus padrões morais singulares, circunscritos a certa época, religião, seita ou ideologia.

Os que discordam são atacados por meio de injúrias, calúnias ou difamações e até agressões corporais. No limite, são fisicamente eliminados. Paradoxalmente, quase sempre os moralistas deixam de praticar aquilo que exigem dos demais.

A ética, por sua vez, derivada da palavra grega traduzida por "bons costumes", corresponde a uma disciplina comportamental que estuda as escolhas morais sob o prisma da razão, com vistas a orientar as ações humanas na direção do bem comum.

O direito para alguns juristas, a exemplo do clássico Georg Jellinek (1851-1911), equivaleria a um "mínimo ético", isto é, a determinado número de preceitos morais considerados indispensáveis à sobrevivência pacífica de dado grupo social e transformados em lei.

No campo do direito, os moralistas expandem ou restringem esse conceito conforme lhes convém, interpretando as regras jurídicas segundo sua visão particular de mundo. Sobrevalorizam a "letra" da lei, necessariamente voltada ao passado, em detrimento do "espírito" da lei, que abriga interesses perenes.

Aplicam as normas legais fria e burocraticamente, trivializando a violência simbólica que elas encerram. Não hesitam em incorrer, proposital ou inconscientemente, no risco da "banalização do mal" de que nos falava a filósofa Hannah Arendt (1906-1975).

A crônica da humanidade é pródiga em desvelar o trágico fim de moralistas que empolgaram o poder e exercitaram aquilo que consideravam direito a seu talante. Basta lembrar a funesta saga do monge Girolamo Savonarola (1452-1498), o qual, com pregações apocalípticas, extinguiu o virtuoso capítulo do Renascimento florentino. Acabou seus dias ardendo numa fogueira.

Ou a do deputado jacobino Maximilien de Robespierre (1758-1794) que, durante a libertária Revolução Francesa, mandou executar arbitrariamente centenas de opositores reais ou imaginários. Terminou guilhotinado, abrindo caminho para Napoleão Bonaparte (1769-1821).

Quer tenham sobrevivido por mais tempo ou deixado a vida precocemente, os moralistas jamais foram absolvidos pela posteridade.

RICARDO LEWANDOWSKI é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ministro do Supremo Tribunal Federal

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