Folha de S. Paulo


CONRADO HÜBNER MENDES, RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ E TATHIANE PISCITELLI

Museu proibido para menores

Divulgação
Três mulheres' (1972), de Maria Auxiliadora da Silva, que será exposta no Masp
'Três mulheres' (1972), de Maria Auxiliadora da Silva, que será exposta no Masp

O Museu de Artes de São Paulo (Masp) abriu nesta sexta-feira (20) a exposição 'Histórias da sexualidade, já anunciada num seminário realizado pelo museu em 2016. Às vésperas da abertura, deu a má notícia: o evento é proibido para menores de 18 anos. Trata-se de fato inédito em suas sete décadas de existência.

Não é mera recomendação, mas uma ordem: adolescentes perto da maioridade não poderão contemplar quadros de Picasso, Degas, Gauguin, entre outros. Enquanto o Museu D`Orsay (Paris) conclama o público a levar suas crianças para que vejam gente nua ("Emmenez vos enfants voir des gens tout nus", dizem os chamados da exposição), e outros museus pelo mundo celebram a diversidade sexual, nosso mais importante museu de arte barra milhares de jovens de uma exposição com obras de artistas renomados que chacoalham padrões de nossa sociedade.

Criamos, ao menos nesta exibição, um museu para adultos.

Desde que certos grupos de pressão, que toleram a delinquência de seus aliados no Congresso Nacional, passaram a concentrar suas energias em regular os aspectos miúdos da intimidade, o vandalismo retórico das redes invadiu o debate sobre a regulação etária de espetáculos artísticos no Brasil.

Segundo nota pública do Masp, a liberdade de expressão precisa se ajustar à proteção prioritária da criança e do adolescente —o que é verdade. Daí não segue, porém, que se possa tirar da cartola uma proibição absoluta nesse caso. Afirmou que tudo foi feito segundo critérios de classificação indicativa do Ministério da Justiça, mas não explicou o essencial: por que 18 anos, a mais restritiva das classificações?

O argumento precisaria justificar essa gritante desproporcionalidade: jovens com idade legal para a prática de sexo consentido, fixada aos 14 anos pelo Código Penal, ou para votar para presidente da República serão barrados na porta da exposição, mesmo que acompanhados por pai e mãe.

A classificação etária é importante, e espetáculos artísticos devem fixá-la com zelo. Mas não pode servir de pretexto para restrições exageradas de acesso público a esses ambientes, que abrigam manifestações de estatura constitucional protegidas de toda forma de censura.

A restrição de 18 anos deve ser guardada para casos extremos, como o da pornografia chula sem qualquer pretensão artística.

Desde os episódios do MAM e do Queermuseu, os fiscais da vida alheia passaram a associar nudez a pornografia. É outra prova de que caminhamos mesmo para trás: remonta ao século 19 o movimento que polemiza a forma idealizada e santificada de retratação do nu humano em obras artísticas, propondo sua substituição por uma descrição mais realista e crua de nossa intimidade, inclusive sexual.

Na Inglaterra do começo do século 20, essa celeuma ficou conhecida como a oposição entre o "pelado" e o "nu" —the naked and the nude. Ironicamente, outra recente mostra do Masp, voltada à obra de Toulouse-Lautrec, em que crianças e adolescentes eram bem-vindos, foi exemplar nesse sentido: mulheres em cabarés, com roupas íntimas e provocativas, alternavam expressões de sofrimento com cenas de intimidade homossexual.

Bom que seja assim, com cada família podendo optar pela visita de acordo com suas convicções.

A proibição incondicional do ingresso de adolescentes na mostra "Histórias da sexualidade" não está à altura da história do Masp, que deveria vir a público explicar melhor sua escolha.

A posição sugere falta de aptidão para o enfrentamento inerente à sua missão. Museus, como a arte em geral, não são bastiões da moralidade predominante e não têm vocação para os 'bons costumes'; ao lado de outras instituições educativas e culturais, devem poder exercer papel contra-majoritário, sem risco de sanção.

A pornografia brasileira é abundante, mas reside em outro lugar. Mais do que nunca, o Brasil precisa de espaços que o libertem de si mesmo, nem que seja por um instante.

CONRADO HÜBNER MENDES E RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ são professores da Faculdade de Direito da USP e coordenadores do Laboratório de Liberdades
TATHIANE PISCITELLI é professora da FGV Direito SP

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