Folha de S. Paulo


RENAN QUINALHA E DIEGO GALEANO

O ciclone conservador no Brasil

Evandro Leal - 13.set.2017/Agência Freelancer/Folhapress
Operários retiram material de divulgação da exposição Queermuseu, em frente à sede do Santander Cultural, nesta quarta-feira (13). A mostra gerou polêmica e foi cancelada pelo banco na tarde do último domingo (10).
Operários retiram material de divulgação da exposição Queermuseu no Santander Cultural, em Porto Alegre

Enquanto furacões assolaram o Caribe e o Golfo do México, um ciclone de conservadorismo moral vem arrasando o já castigado Brasil.

Os últimos dias foram testemunhas de uma tormenta reacionária no campo do gênero e da sexualidade, que atingiu tanto o sistema de justiça como diversas instituições culturais, colocando em xeque a liberdade de expressão artística e o reconhecimento da diversidade.

No dia 10 de setembro, a mostra "Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira", que trazia uma leitura da história das artes plásticas brasileiras a partir de uma perspectiva LGBT, foi encerrada antecipadamente pelo Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre.

Por trás do episódio, estavam a pressão nas redes sociais e até mesmo a violência física que membros do Movimento Brasil Livre (MBL) dirigiram contra a exposição, artistas, curador e espectadores.

O MBL alegou que havia apologia à pedofilia e à zoofilia. Não foi suficiente que o próprio Ministério Público desmentisse as acusações: o Santander Cultural, que usou incentivos fiscais, ou seja, verbas públicas, para patrocinar o evento, cancelou antecipadamente uma exposição que começou a ser pensada em 2010 e que contava com quase 270 trabalhos de 85 artistas consagrados dentro e fora do país.

Por meio dessa medida, o Santander Cultural desrespeitou artistas, curador e o público, além de ter violado o termo de empréstimo das obras.

Poucos dias depois, em 15 de setembro, foi a vez da censura judicial da peça "O Evangelho segundo Jesus, rainha dos céus", sob a alegação de que uma travesti não poderia interpretar o personagem de Jesus Cristo.

Em uma ginástica argumentativa de pretendida imparcialidade moral e laicidade ("não se trata aqui de imposição de uma crença nem de uma religiosidade"), o juiz Luiz Antonio de Campos Júnior buscou "impedir um ato desrespeitoso e de extremo mau gosto que certamente maculará o sentimento do cidadão comum, avesso a esse estado de coisa".

"Agressiva", "ofensiva", "desrespeitosa", "ridícula", "de mau gosto" e "de baixíssimo nível intelectual" foram as expressões utilizadas por ele para designar uma peça que nem chegou a ver, mas que decidiu proibir liminarmente.

Alguns desses adjetivos, contudo, aplicam-se mais à própria decisão do juiz do que à peça em questão. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Só em 2016, foram 137 assassinatos, um a cada 3 dias. A expectativa média de vida das travestis e transexuais é de 35 anos, menos da metade da média brasileira, que gira em torno dos 75.

Além de uma violação expressa à liberdade de expressão e à liberdade artística, a decisão representa, sobretudo, um atentado contra a dignidade e os direitos fundamentais das pessoas trans.

O vendaval não se deteve. No mesmo dia 15 de setembro, um juiz federal determinou que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reinterpretasse uma norma interna, editada em 1999, para deixar de proibir psicólogos de oferecerem terapias de "(re)orientação sexual", abrindo uma brecha para a famigerada "cura gay".

Em outras palavras, a decisão judicial nos fez retroceder décadas ao recolocar no debate público a concepção da homossexualidade como uma doença ou um transtorno que mereça tratamento e, por consequência, cura.

O próprio CFP já tinha retirado a homossexualidade da lista de transtornos mentais em 1985, mesmo ano em que o Conselho Federal de Medicina desclassificou a homossexualidade como um "desvio e transtorno sexual".

O Brasil refletia, então, uma tendência mundial de despatologização, que havia começado em 1973 com uma decisão da Associação Americana de Psiquiatria e que culminaria com a exclusão da homossexualidade da lista de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1990, há mais de um quarto de século.

Já no dia 26 de setembro, o alvo da vez foi o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Na abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira, o coreógrafo Wagner Schwartz realizou a performance "La Bête", em que ficava nu sobre um tatame em interação direta com o público.

Uma criança, acompanhada por sua mãe, tocou no pé do artista, o que foi suficiente para, na histeria das redes, converter uma performance artística com nudez em um episódio de pedofilia e iniciar um linchamento virtual.

Ainda que o museu tenha sinalizado o tipo de conteúdo na sala e que a criança estivesse acompanhada de sua responsável, protestos contra o MAM foram feitos com violência, inclusive com agressão física contra empregados da instituição cultural.

Todos esses acontecimentos recentes e aparentemente pontuais revelam, em verdade, um processo mais complexo de avanço da ingerência de religiosos fundamentalistas sobre os poderes constituídos do Brasil.

Grupos que já vinham dominando a agenda do Poder Legislativo e chantageando o Executivo, algo já notado com clareza nas discussões sobre os planos de educação em todo o país, estenderam agora seus braços também ao Judiciário, aos museus e aos palcos teatrais em uma verdadeira cruzada contra a diversidade sexual e de gênero.

A escolha da figura da pedofilia como espantalho do momento não é inocente. O amplo repúdio social que tal conduta, obviamente inaceitável, desperta faz com que, no mundo do narcotráfico e das prisões, o rótulo do pedófilo seja uma licença para todos os suplícios e violências.

A censura dos grupos conservadores encabeçados pelo MBL é, antes de qualquer coisa, um ato performativo. Na ausência de um projeto estético e artístico —como tinha, por exemplo, o nazismo—, eles pegaram a arte para Cristo.

A pauta comportamental camufla uma crise desses setores, que resolveram silenciar diante das sucessivas denúncias de corrupção contra o governo Temer e, assim, perderam capacidade de mobilização nas ruas.

Enquanto uma mão esconde a foto com o ex-aliado Eduardo Cunha, a outra ergue o dedo indicador em direção aos bodes expiatórios de ocasião. O panorama se parece muito com uma profecia autorrealizada: os episódios de censura, ainda que esporádicos, forjaram um quadro de guerra cultural que só beneficia o MBL e suas pretensões eleitorais para 2018.

O drama não é novo. A laicidade do Estado brasileiro já se encontrava, há tempos, comprometida pelo crescimento da força parlamentar da bancada religiosa, especialmente a evangélica, no país.

Tal cenário se agravou após o golpe de 2016, que levou Michel Temer ao poder em aliança com esses segmentos fundamentalistas. Além disso, no dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 6 votos a 5, que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter caráter confessional, ou seja, seguir ensinamentos de religiões específicas. Uma "escola sem partido", mas de uma igreja, reforça a perspectiva de um controle moral ainda mais acentuado nas escolas vetando discussões lúcidas e racionais sobre gênero e sexualidade.

Pode-se afirmar que a reação conservadora atual é produto de um inconformismo de alguns setores com o reconhecimento jurídico da cidadania LGBT, que se ampliou nas últimas décadas.

Movimentos sociais e coletivos artísticos estão se mobilizando nas ruas contra a censura e a vigilância moral. Assim, é possível que muitas medidas se revertam, como já aconteceu com a liminar que proibia a apresentação da peça "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e que foi cassada em 3 de outubro.

Do mesmo modo, a decisão sobre a "cura gay" também deve ser revogada, dada sua fragilidade jurídica.

Além da mobilização nas ruas contra as censuras, contudo, são também necessárias respostas institucionais. Como sugere o crítico e historiador da arte Sérgio Bruno Martins, é urgente discutir um protocolo de respostas para proteger as vítimas da exposição cruel e arrasadora deste tipo de ataques e intimidações. Trincheiras jurídicas e respostas institucionais devem ser construídas para preservar as liberdades públicas ora ameaçadas.

A recente nota de repúdio do Instituto Brasileiro de Museus, expressando preocupação diante das "tentativas de censura" a trabalho de artistas e curadores, foi fundamental.

No mesmo sentido, é bastante oportuna e necessária a campanha "342 artes", organizada por Paula Lavigne, para aproximar o mundo das artes da população de modo a desfazer as confusões
propositadamente criadas.

Salutar também é a iniciativa de artistas de levarem aos tribunais figuras públicas e mesmo políticos que, ocupando cargos públicos relevantes como as prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro, estão incentivando campanhas difamatórias e devem responder judicialmente por atitudes levianas.

A histeria da guerra virtual, marcada pela polarização e pela superficialidade dos debates, é o terreno em que quer jogar o MBL. Ainda que esse vendaval conservador seja atenuado ou revertido nos próximos meses diante da rapidez com que emergem novas agendas políticas, fato é que seus efeitos devastadores ficam marcados no debate público e nos corpos das pessoas.

Assim, a hora é de unir todas os segmentos com compromisso democrático e com a diversidade para qualificar o debate público e interromper a atual escalada obscurantista.

RENAN QUINALHA é advogado e professor da Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo)
DIEGO GALEANO é historiador e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


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