Folha de S. Paulo


Vera Iaconelli

Aprendendo a ser pais ausentes

Um humano sai em busca de um mamute, persegue-o durante o dia, arma a emboscada e, depois de inúmeras tentativas, consegue matá-lo e abocanhar seu quinhão de carne.

Em seguida, exausto, volta para casa com o firme propósito de deitar e rolar no tapete com o filho, contar historinhas repetitivas e ignorar a bronca merecida do pimpolho, pois, afinal, trata-se de um pai/mãe ausente o dia todo.

Antes de dormir, ainda se verá no espelho com um olhar de feroz reprovação pela falta de tempo e de pique para a ginástica, para o sexo e para a vida social.

Bem-vindo à geração cem por cento, que acredita que pode e deve dar conta de tudo e de fazer escolhas que não impliquem perdas. Uma aluna comentou esse fenômeno sabiamente: "Escolha sua perda!". Sim, é disso que se trata.

Uma ínfima parcela da população pode se dar ao luxo de não ter que caçar seu mamute diariamente. Além disso, temos outras aspirações, que nos fazem mais do que caçadores, que nos fazem humanos.

Ainda assim, somos assombrados pela ideia de que nossos filhos serão traumatizados pela nossa ausência. Aqui funciona a lógica de que pai e mãe são oxigênio, de que qualquer outro adulto cuidando deles será fatal.
Trata-se de uma lógica capitalista do individualismo, do semelhante como ameaça e da entrada do especialista no lugar dos laços sociais.

Nossos filhos viverão em média 4 a 5 décadas mais do que nós -ou seja, os deixaremos órfãos, na melhor das hipóteses. Ausência fundamental que marca o sentido da parentalidade, pois acarreta criar sujeitos rumo à autonomia.

Portanto, devemos reconhecer que nossa participação em suas vidas só tem sentido se apontar para além de nós mesmos, para os laços sociais e o mundo.

Há, ainda, outras ausências, menos radicais do que a morte, com as quais devemos aprender a lidar. Ausentamo-nos trabalhando, amando outras pessoas, amando outras coisas e amando a nós mesmos. Para o bem da saúde mental de nossos filhos, temos outros interesses e outras fontes de prazer e realização, o que permitirá a eles tê-los também.

Ninguém merece ser tudo para um pai ou uma mãe. Por outro lado, nenhum adulto merece criar uma criança sem ajuda, sem respiro, tendo que gostar de brincar por obrigação.

Crianças devem conviver com vários adultos reais, limitados, sinceros, honestos e protetores, sejam familiares ou profissionais. E, preferencialmente, estar com outras crianças.

A tarefa parental é imensa e vitalícia. Será exercida por quem assumir essa responsabilidade radical, não cabendo aqui fazer diferença entre homens e mulheres, pais e mães. Quem tomar para si essa missão só poderá cumpri-la a partir de suas escolhas e consequentes perdas, sem fazer da parentalidade um poço de ressentimento e culpas, cuja conta quem paga são os filhos.

Então, façamos a lição de casa. O que realmente é possível para cada família específica, para além de um mundo fantasioso no qual os pais se dedicariam integralmente aos filhos como se isso fosse bom para as crianças?
Perguntemo-nos também o que é desejável para nós, pois a presença ressentida não passa desapercebida aos pequenos.

Ao deixá-los com outros, sejam familiares ou profissionais, cabe assumir essa escolha, não valendo controlar à distância avós, babás e professores, o que é enlouquecedor.

Enfim, escolha sua perda e aprenda a se ausentar. As novas gerações agradecem.

PARTICIPAÇÃO

VERA IACONELLI, psicanalista, é diretora do Instituto Gerar. Escreveu o livro "Mal-estar na maternidade: do infanticidio à função materna" (Annablume, 2015)

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