Folha de S. Paulo


Milly Lacombe

Ajuda a gente, Silvio

Lourival Ribeiro/SBT/Divulgação
Silvio Santos recebe as filhas Silvia e Patricia no jogo das 3 pistas
Silvio Santos recebe as filhas Silvia e Patricia no jogo das 3 pistas

Silvio Santos é um comunicador relevante há décadas, mas talvez seja hora de pensarmos no tipo de comunicação de que precisamos. Palavras são eventos que transformam coisas, emitem compreensão e emoção, e depois ampliam essa energia, escreveu Ursula Le Guin.

Palavras podem dar voz ao oprimido e nos elevar a um lugar de significado; ou dar voz ao opressor e nos reduzir a um lugar de confinamento.

Em seu programa de 13 de agosto, Silvio disse: "Às vezes minhas palavras são ofensivas, mas não faz mal". Faz mal se a ofensa perpetua estruturas de opressão. O que num programa de auditório é ligeiramente ofensivo, nas ruas pode ser irremediavelmente fatal, sobretudo quando se trata de um comunicador alçado à fama por mulheres.

Depois explicou, criando suspense, em demonstração de sua genialidade, que tinha em mãos uma foto vergonhosa. Contou que era a imagem de uma colega, e que o fato de ela ter tirado a foto, sobre a qual sugere sensualidade, é rasteiro.

Rasteiro é uma palavra forte. Rasteiro é que entre 2009 e 2011 o Brasil tenha registrado mais de 17 mil feminicídios, é que 70% das vítimas de violência sexual sejam crianças e adolescentes, é chamar uma jovem de gorda e submeter uma colega de trabalho, que está em sua bancada, ao constrangimento. Tudo isso é rasteiro.

E escândalo, uma das palavras usadas para definir a imagem, é a taxa de assassinatos de mulheres negras, que aumentou 54% em dez anos. O comunicador pode usar o discurso para desconstruir esses cenários, ou para justificá-los.

A foto, afinal, é de uma mulher de biquíni na praia, e Silvio indicou dizer aquelas coisas porque gosta da colega. A passividade agressiva é uma técnica de opressão: como o opressor não pode dominar pela força, precisa de uma ideologia, e por isso faz uso do "é para o seu bem".

Depois, Silvio afirmou, entre risos, que a imagem é uma brutalidade. Brutalidade não é a foto de uma mulher de biquíni na praia; brutalidade é que uma mulher seja estuprada a cada 11 minutos no Brasil, assim como assistir a uma dinâmica "patrão-empregado" dentro da qual um tem o poder e o outro precisa do salário.

Foram 10 minutos desse discurso misógino. Na sequência ele mandou um recado para Fernanda Lima, apresentadora do programa "Amor & Sexo", na Globo, que divulga dados de violência contra minorias.

Ficou claro que Silvio está machucado com o fato de Fernanda ter dito "Por que não te calas?", num apelo para que ele pare de julgar nossas roupas, nossos cabelos, nossos corpos.

"Não vou me calar", repetiu ele. "Se ela não souber fazer amor e sexo, posso ensinar."

É o machismo vestido de piada, jogado ao ar como as notas de R$ 50 que ele oferece à plateia.

Ao final, nem todos percebem como Silvio acabou de reforçar os mecanismos de opressão, e nem todos percebem como o discurso desse homem carismático serviu para justificar, por exemplo, que a mulher da casa ao lado, que naquela manhã foi trabalhar com uma saia curta, apanhe do marido ao voltar.

Uma agressão corriqueira, perpetuada por esse tipo de narrativa.

Silvio deveria entrar para a história como alguém genial. Seria de fato genial se usasse seu talento para acabar com desumanidades, seu carisma para agigantar o feminino, seu alcance para dar voz ao oprimido.

Genial não é, em nome da sinceridade, humilhar criança, criticando seu cabelo de negra, ou fazer piada com gorda. Isso é desumano.

Silvio poderia usar seu talento não para nos humilhar e apequenar, mas para libertar, mulheres e homens, das garras perversas do machismo. Ajuda a gente, patrão.

PARTICIPAÇÃO

MILLY LACOMBE é escritora e colunista das revistas "Trip" e "TPM". Publicou, entre outros, o livro "O Ano em que Morri em Nova York" (ed. Planeta)

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