Folha de S. Paulo


Rogério Cezar de Cerqueira Leite

Universidade pública e as cotas

Aproveitando-se da corajosa, porém controversa, iniciativa da USP de estabelecer cotas de ingresso a estudantes socialmente carentes, as mesmas carpideiras de sempre do defunto "ensino pago" retomam sua irracional e obsoleta cantilena demagógica pelo pagamento de mensalidades à universidade pública.

Aqueles que vociferam contra a gratuidade da universidade são exatamente os mesmos que praguejam contra as cotas, o que torna óbvia a natureza de sua intolerância de elitistas sociais.

Para os cotistas, a universidade será uma ferramenta de ascensão social, e é isso o que incomoda a muita gente.

Pois bem, vejamos para que serve uma universidade. Escolas públicas de medicina são criadas por governos porque as suas comunidades precisam de médicos e não porque os futuros médicos precisem de empregos. Para estes últimos são criadas as faculdades privadas.

Universidades públicas são criadas porque a sociedade precisa gerar e difundir conhecimento. Ora, se essas instituições têm como objetivo satisfazer necessidades específicas e incontornáveis da população, é indevido, para não dizer imoral, cobrar do indivíduo que aceite realizar tais serviços.

Ao impor pagamentos para a formação de profissionais, não iremos criar cidadãos, ou melhor, indivíduos mercantilistas, sem qualquer preocupação social? Pois como pagaram para a própria formação sentem-se dispensados de qualquer obrigação humanística.

Isso, por outro lado, não quer dizer que não se deva procurar doações e outras contribuições voluntárias.

Se a universidade é uma instituição criada para produzir e difundir conhecimento, seria uma transgressão dar a ela outras missões, tais como a inclusão social, por decisão da corporação interna, que não representa a sociedade. Apenas governos têm, pois, a legitimidade para tal.

Todavia, por vezes "Deus escreve certo por linhas tortas". É verdade que o Congresso Nacional deu uma relativa lidimidade à decisão da USP. Absoluta validade ocorreria apenas se a Assembleia paulista a confirmasse, pois sob tais aspectos a autonomia da universidade pública não é, nem deveria ser, estendida.

Se no passado havia argumentos, embora pífios, para condenar as "cotas" devido ao risco de prejuízo para a "qualidade" do ensino e da pesquisa, hoje essa possibilidade já não existe. Nestes últimos 10 ou 12 anos, acumularam-se evidências de que os alunos de ensino médio público beneficiados por cotas não são inferiores aos demais quanto a resultados acadêmicos.

E é de se esperar que o mesmo ocorra com negros, pardos e indígenas, que são, certamente, mais agudamente motivados pela necessidade imperativa de ascensão social do que aqueles que lá já chegaram por herança fortuita.

É óbvio que mais justo seriam políticas inclusivas voltadas aos mais necessitados em geral. Mas condenar o melhor porque não é perfeito é no mínimo estreiteza intelectual.

Os argumentos baseados em reparações históricas, frequentemente oferecidos pelos defensores das cotas, são frágeis e por vezes piegas.

O que realmente se busca é uma sociedade mais civilizada e com menor injustiça social e, consequentemente, com menores disparidades de renda e de qualidade de vida.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

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