Folha de S. Paulo


ROBERTO LIVIANU

O fim dos privilégios

No debate sobre o fim do foro privilegiado, o advogado Fábio Medina Osório sustentou em artigo publicado na Folha que as decisões colegiadas da Justiça seriam importantes para proteger de práticas arbitrárias os titulares de certas funções públicas.

Essa foi a justificativa que se usou para lastrear a construção do conceito de foro privilegiado há décadas. Além de se dizer também que juízes de primeira instância poderiam ser vulneráveis ao poder dos coronéis.

Mas o Brasil mudou, a imprensa é ativa e livre, as redes sociais são forças vivas e a sociedade está vigilante. Não se pode mais dizer que juízes de primeiro grau sejam medrosos ou vulneráveis -tome-se o exemplo de Sergio Moro.

Além disso, julgamentos colegiados são a tônica dos tribunais. E tribunais são estruturas concebidas para a reavaliação de processos cuja prova foi colhida em primeiro grau. É lá, em primeira instância, que se produz a prova. É lá que ela é debatida sob o crivo do contraditório.

Os tribunais são organismos de revisão de decisões para fazer valer o sistema de duplo grau de jurisdição, que por si só já serve para proteger de arbitrariedades aqueles que exercem funções públicas, inclusive com a possibilidade da invocação da tutela de urgência.

A ideia de querer proteger funções, na verdade, subverte o princípio da isonomia, pedra angular do sistema constitucional, além negar o duplo grau de jurisdição.

E os problemas não são apenas esses. O Supremo Tribunal Federal deveria exercer o papel de guardião da Constituição da República e somente ser acionado para defendê-la.

Quando se exige dele que instrua ações penais, os processos demoram muito e os casos prescrevem, ficando o gosto amargo da impunidade. E a Constituição fica sem guardião pleno.

O projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas, examinou 404 ações penais concluídas entre 2011 e 2016. Delas, 68% ou prescreveram ou foram repassadas para outras instâncias. Resultaram condenação apenas 0,74% dos casos, o que é alarmante.

Vale lembrar aqui que os ministros do STF são escolhidos politicamente, ao passo que os juízes de primeiro grau são concursados e selecionados por meritocracia, o que é importante para evitar conflitos de interesses.

Muitas vezes o foro privilegiado pode ajudar a prorrogar carreiras de políticos envolvidos em escândalos, até porque, não obstante estarmos na vigência da Lei da Ficha Limpa, muitos partidos políticos acabam abrigando fichas sujas.

O que os defensores do foro chamam de "perigosas discricionariedades de milhares de magistrados" eu denominaria de "preciosos ventos livres da interpretação da lei", o que permite a reinvenção sem o engessamento da Justiça, acompanhando o dinamismo do corpo social. A segurança jurídica é garantida pelo duplo grau e pelos tribunais superiores.

O padrão Lava Jato é uma nova referência para o sistema de Justiça, que tem em sua estrutura milhares de magistrados e membros do Ministério Público que lutam diariamente em prol da sociedade e pelo bem comum.

O foro especial integra um guarda-chuva maior que é a cultura dos privilégios. Precisa ser extirpado, por ser incompatível com os princípios republicanos e com a essência democrática da igualdade de todos perante a lei.

ROBERTO LIVIANU, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

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