Folha de S. Paulo


Érica Gorga

As viagens de Temer e Joesley

Não é de hoje que as noções de público e privado confundem-se no Brasil. A mesma indistinção por vezes ocorre entre a propriedade da empresa e a propriedade de seus acionistas controladores.

A novidade talvez seja que essa confusão contaminou o trabalho dos próprios membros do Ministério Público, que, como técnicos, deveriam disseminar informações corretas sobre o dinheiro desviado em propinas e benesses a infratores.

Um exemplo: procuradores divulgam dados a respeito do desvio de dinheiro "público" do "petrolão". Tecnicamente, segundo normas do direito brasileiro, o dinheiro desviado pertence à empresa Petrobras, que tem personalidade jurídica própria e patrimônio separado em relação ao Estado brasileiro.

A Petrobras é sociedade de economia mista na qual a União, apesar de ser acionista controladora, possui menos de 29% do capital total. A análise da propriedade acionária revela, portanto, que investidores privados arcaram, proporcionalmente, com a maior parte dos prejuízos advindos do megaesquema de corrupção.

Seguindo tal fenômeno, que denominei de "petromonialismo" por não distinguir o desvio de dinheiro público do privado, vê-se agora o "Esleymonialismo," que confunde o patrimônio da empresa JBS com propriedades particulares de Joesley e Wesley Batista, seus acionistas controladores.

Noticiou-se que Joesley, após a divulgação do escandaloso acordo de delação premiada, mudou-se com sua família para os Estados Unidos em "seu jato", fato que, aliás, causou enorme indignação nacional. Ocorre que o citado jato, tecnicamente, não pertence aos irmãos Batista, mas sim à companhia JBS, conforme noticiou esta Folha.

Pequeno detalhe que só faz aumentar tal indignação. A JBS possui como acionistas o BNDES, com cerca de 21% das ações, a Caixa Econômica Federal, com 5%, e outros investidores, detentores de 30%.

Isso significa que o custo do leasing e das viagens das aeronaves é pago na proporção de 26% com dinheiro do próprio Estado -já que BNDES e Caixa são empresas públicas -e de 30% com dinheiro de investidores e acionistas privados.

Verifica-se, então, que Joesley ofereceu ao presidente da República -para, futuramente, poder cobrar o "favorzinho" financiado por chapéu alheio- o uso da aeronave custeada irregularmente por acionistas minoritários, tanto da esfera pública como da privada.

Se a utilização do jato fizesse parte da remuneração regular de conselheiros e diretores da empresa -os próprios Joesley e Wesley-, tal informação precisaria constar na política de remuneração da JBS, que deve ser oficialmente divulgada à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Todavia, o emprego das aeronaves não consta como benefício indireto -ou seja, Joesley faz uso da propriedade da empresa para fins absolutamente particulares e alheios aos interesses dos demais acionistas.
Tal conduta já se encontra sob investigação em processo administrativo aberto pela CVM após a notícia veiculada pela Folha.

Cabe agora também investigar o uso ilegal das aeronaves da JBS para fins de lazer de convidados de Joesley, prática que lesa os acionistas minoritários da empresa, os quais não deveriam ser obrigados a cofinanciar viagens a Nova York, a Comandatuba (BA) e, provavelmente, a outros destinos turísticos.

ÉRICA GORGA, doutora em direito comercial pela Faculdade de Direito da USP, foi professora nas Universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt (EUA)

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