Folha de S. Paulo


ROBERTO DELMANTO JUNIOR

"JusInjustiça"

Os cidadãos brasileiros encontram-se, com toda a razão, visceralmente indignados com o teor das delações premiadas que têm exposto a magnitude da corrupção e do caixa dois nas campanhas.

A mais famosa delação de nossa história deu-se no julgamento de Tiradentes em 1792, com Joaquim Silvério dos Reis. Com a Independência, o instituto desapareceu.

Foi só em 1990 que a delação foi incorporada ao ordenamento brasileiro, chegando ao seu ápice com a lei n° 12.850/2013.

Veio ao Brasil por influência da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), sediada em Paris, lembrando-nos o utilitarismo do inglês Jeremy Bentham e o pragmatismo norte-americano.

Quando a investigação é bem-feita, está acompanhada de provas e, na avaliação do defensor e do acusado, possui alta probabilidade de punição severa, a delação se transforma em um meio de defesa. Uma rendição para "casos perdidos", com "redução de danos".

Em face do enorme número de colaborações, fato é que o processo penal virou uma espécie de mercado de negociação de delações: leve a impunidade ou grande diminuição de sua pena, mediante a contrapartida de confessar o crime, devolver o dinheiro quando houver, ser traidor e delatar os outros, trazendo provas e novidades.

Se puder gravar áudios clandestinamente, melhor ainda. Quanto mais importante o delatado, maior a recompensa -poderá nem ser acusado.

Nessas barganhas, feitas sempre com os advogados, um aspecto sintomático é o aumento das prisões provisórias. Caso não houvesse o instituto da delação, teria sido decretada a prisão do investigado?

A pergunta é perturbadora; a depender da resposta, as consequências, gravíssimas, podem configurar medieval ilícito.

Por outro lado, o Brasil viu um ex-funcionário de uma grande empreiteira afirmar às autoridades, com um sorriso: "Eu quero curtir a minha vida quando vocês tirarem esse negócio do meu pé [referindo-se à tornozeleira eletrônica]... Curtir os 40 anos que trabalhei...".

Assistimos também a proprietários da maior empresa de proteína animal do mundo, com aportes do BNDES de mais de R$ 8 bilhões, irem morar em Nova York e de lá comandarem suas empresas, após confessarem graves crimes.

Esse é o custo/benefício da delação premiada. Nunca o Ministério Público teve tanto poder na história do Brasil -seus membros tornaram-se senhores de quem poderá ou não ser beneficiado com a delação, a depender do "tamanho da presa" a ser entregue, capturada em armadilhas bem armadas, com áudios clandestinos.

E os delatados serão punidos? Provavelmente algumas acusações são injustas. Buscarão demonstrar que não existem provas, que os delatores se contradizem ou mentem para agradar a acusação, que a prisão lhes impôs coação e que o acordo é nulo.

Vivenciamos uma metamorfose pragmática e autofágica no ideal de justiça, retratada no neologismo "JusInjustiça". Na condenação de delatados há a impunidade dos delatores; é a injustiça dentro da justiça.

A imagem é a do Coliseu romano: os gladiadores são os delatores e seus advogados, lutando com os delatados e seus defensores. As armas são as gravações, as provas, os detalhes e as contradições.

O público brada por Justiça, e o juiz assiste à luta lá do alto. Já o Ministério Público não mais está ao seu lado direito, mas em um degrau acima. Tornou-se, afinal, o senhor da delação e, portanto, da Justiça e da "JusInjustiça".

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, doutor em direito pela USP, é advogado criminalista. É coautor de "Código Penal Comentado" e "Leis Penais Especiais Comentadas", entre outras obras

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