Folha de S. Paulo


ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO

Judiciário deveria censurar publicação sob o argumento de violação da privacidade? SIM

LIMITAR LIBERDADE DE IMPRENSA NÃO É CENSURA

Os recentes episódios envolvendo a divulgação dos dados do celular da primeira-dama, Marcela Temer, reacenderam a discussão sobre os limites da atuação do Poder Judiciário nos casos que envolvem, de um lado, o direito à intimidade e à vida privada, e, do outro, a liberdade de imprensa.

Não é a primeira vez que imagens e áudios íntimos de pessoas públicas são expostos ao público sem a devida autorização, sob o argumento do princípio constitucional da liberdade de imprensa.

A modelo Daniella Cicarelli, por exemplo, foi flagrada e gravada, sem autorização, fazendo sexo numa praia. O vídeo foi divulgado no YouTube. A atriz Carolina Dieckmann foi alvo de hackers que publicaram diversas fotos íntimas dela na internet.
Como em todos os casos que envolvem a colisão de direitos fundamentais, a questão não tem resposta pronta e apresenta bons argumentos e teses jurídicas, qualquer que seja o ponto de vista.

A imprensa exerce importante papel na sociedade democrática. É encarregada de informar sobre fatos relevantes do Brasil e do mundo, além de ser formadora de opiniões.

Invariavelmente, no entanto, os meios de comunicação invadem a vida privada e a intimidade das pessoas, causando danos irreparáveis. Praticam verdadeiro abuso no exercício da liberdade de informação.

A nossa Constituição garante a livre manifestação do pensamento, veda o anonimato, garante a liberdade de expressão -incluídas atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Atualmente, há extrema facilidade em propagar informações, inclusive aquelas obtidas por meio de redes e aplicativos sociais, muitas vezes sem o consentimento do lesado ou qualquer tipo de autorização judicial.

Nesse ambiente dúbio, devemos questionar até que ponto é lícito à imprensa tornar pública a vida íntima das pessoas sob o pretexto de levar a informação aos diversos setores da sociedade. Vale frisar que a própria Constituição impõe limites à liberdade de imprensa.

Deve ficar bem claro, também, que as limitações do texto constitucional ao livre exercício do direito de informar não configuram censura -que em geral é prévia, de caráter político, ideológico ou artístico.

A suposta chantagem contra a primeira-dama é evento relevante, e suas repercussões transcendem a esfera da privacidade. No entanto, o conteúdo dos dados é, sim, material íntimo, e pode ser preservado.
Outro ponto que merece bastante destaque tem origem em famoso aforismo jurídico: garantias constitucionais não se prestam para proteger atividades ilícitas ou criminosas.

Pelo que se sabe, a primeira-dama não foi alvo de uma interceptação telefônica legítima, tampouco teve seus dados repassados por algum de seus interlocutores, ou mesmo consentiu com a divulgação do conteúdo de suas conversas íntimas.

Foi vítima de uma sequência de atos criminosos que tiveram início no acesso indevido aos seus dados e culminou com a exigência de pagamento de quantia vultosa, sob pena de divulgação de conteúdo que eventualmente causaria constrangimentos não apenas a ela mas também a terceiros, o que justificaria, por si só, uma restrição ao acesso público e irrestrito do material.

Por tudo isso, a situação deve ser analisada com frieza e cautela, abstraídas as posições políticas e ideológicas, mas com a certeza de que, em várias situações, a preservação da intimidade das pessoas deve se sobrepor ao interesse público.

Em que pesem sólidas e embasadas posições contrárias no recente episódio, é correta a atuação do Judiciário para proibir a divulgação de conteúdos privados de conversas da primeira-dama, sob o argumento da proteção à intimidade.

ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO, mestre em direito pela Washington University (EUA), é advogado da União e professor de direito penal e constitucional do Centro Universitário de Brasília

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