Folha de S. Paulo


Hédio Silva Jr.

STF, vaquejada e abate religioso

No julgamento em que examinou a regulamentação da vaquejada, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu acertadamente que essa manifestação cultural implicava crueldade e maus-tratos aos animais.

Na vaquejada o boi é enclausurado, açoitado, instigado a correr e tem sua cauda retorcida até cair.

Por esse ângulo, a prática não tem absolutamente nenhuma relação com o abate religioso de animais, um preceito alimentar e litúrgico adotado por judeus, muçulmanos e candomblecistas, regulamentado pelo decreto federal nº 30.691/1952, por normativas do Ministério da Agricultura e decretos estaduais.

A técnica da jugulação, comum no judaísmo, no islamismo e nas religiões afro-brasileiras, é catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário, pois provoca morte instantânea, reduz a dor ao patamar mínimo e evita sofrimento desnecessário.

O direito à alimentação kosher (judaica) e halal (islâmica) tem sido ratificado por reiterados julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos quais companhias aéreas foram condenadas a indenizar passageiros que solicitaram previamente dieta religiosa e foram negligenciados pelos transportadores.

Do ângulo econômico, atualmente o Inmetro e o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços investem na criação de um Selo Halal para que o Brasil amplie negócios com o cobiçado mercado alimentício muçulmano -em 2015 essas certificações movimentaram cerca de US$ 1 trilhão.

Para além de sua dimensão dietética e econômica, o abate religioso constitui um preceito litúrgico referido já no Antigo Testamento, visto que o terceiro livro do Pentateuco, Levítico, faz inúmeras alusões ao abate de animais.

Na Kaparot, ritual judaico realizado nas vésperas do Yom Kipur (Dia do Perdão), um homem apanha um galo -ou, sendo mulher, uma galinha- e passa o animal nove vezes sobre a cabeça, recitando a prece "bracha bnei adam" (seja esta minha expiação). Em seguida entregam o animal ao shochet, sacerdote responsável pelo abate.

Já os muçulmanos celebram a Eid al-Adha (Festa do Sacrifício), cerimônia realizada no décimo dia do último mês do calendário islâmico, no fim da hajj (peregrinação a Meca). São sacrificados carneiro, camelo, cabra ou boi.

De seu turno, as religiões afro-brasileiras, especialmente o segmento filiado à doutrina iorubá, celebram o Etutu (ritual de oferendas), sendo que o alimento resultante do abate é consumido pelos fiéis e pela comunidade que circunda os templos.

Em breve os parâmetros jurídicos do abate religioso serão examinados pelo STF, tendo como base uma decisão do Tribunal de Justiça gaúcho de que o abate praticado pelas religiões afro-brasileiras, desde que sem excesso ou crueldade, nada tem de ilegal ou inconstitucional.

Vale lembrar que a Constituição Federal assegura a liberdade de culto e de liturgia, proíbe o Estado de embaraçar o funcionamento das cerimônias religiosas, protege as manifestações culturais e prescreve a valorização da diversidade étnica.

Por esse ângulo, é possível afirmar que o julgamento do abate religioso terá pouca ou nenhuma relação com o julgamento da vaquejada. Com a palavra, o STF.

HÉDIO SILVA JR. é advogado. Foi secretário da Justiça do Estado de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin)

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