Folha de S. Paulo


Fabio da Rocha Gentile

As sombras da personalidade jurídica

Sigmund Freud era médico neurologista e criou a psicanálise, ciência que investiga a personalidade humana.

Seu discípulo, Carl Jung, conceituou os chamados arquétipos, componentes historicamente inseparáveis de toda pessoa, tais como a sombra.

Se Freud e Jung fossem juristas e tivessem investigado a personalidade jurídica, fatalmente eles constatariam que um dos mais importantes problemas para a psicologia também o é para o direito, a sombra.

Na psicologia analítica, a sombra é tudo aquilo que não condiz com o comportamento social esperado e, por isso, tende a se manter oculto pelo ser humano.

Ao invés de assumir seus traços sombrios, o homem costuma projetá-los a outrem, como se estivesse transferindo suas próprias responsabilidades.

Não é necessária muita profundidade no estudo do direito - basta alguma experiência prática - para identificar a infinidade de problemas que se devem àquilo que se esconde por trás das personalidades jurídicas.

Todas as pessoas, inclusive as jurídicas (empresas, associações e fundações), têm personalidade jurídica, no sentido de que podem assumir direitos e obrigações, ou melhor, podem fazer negócios em geral, por si ou por quem as represente.

Sem mais teorias, duas notícias recentes retratam a dimensão do estrago que produzem as sombras da personalidade jurídica.

Na última eleição para cargos municipais, os candidatos atribuíram o uso de R$ 300 milhões em suas campanhas a doações um tanto quanto improváveis.

Os doadores seriam 22,4 mil pessoas inscritas no Bolsa Família, 46,7 mil desempregados, 23,8 mil contribuintes sem renda compatível com os valores doados e, ainda, 143 mortos.

Por fraudes fiscais na exportação de mercadorias, a Receita Federal autuou em mais de R$ 8 bilhões empresas paulistas que teriam se utilizado de offshores para sonegar receitas.

As mercadorias eram exportadas com valores reduzidos, mas depois refaturadas com preços reais pelas empresas de fachada, sediadas em paraísos fiscais e controladas dissimuladamente pelas próprias exportadoras brasileiras.

O uso da personalidade jurídica alheia é um arquétipo da sociedade contemporânea, componente invariável em qualquer esquema de fraude.

Quem possui empresas em nome de laranjas, quem tem patrimônio em nome de testas de ferro, quem vende o que continua sendo seu, quem compra em nome alheio, quem é contratado sem aparecer, quem recebe sem ser contratado etc., frauda a própria personalidade e se reduz à sua sombra.

Mal comparando com a psicologia analítica, quem se esconde sob a personalidade jurídica alheia naturalmente projeta suas responsabilidades aos terceiros de que se utiliza.

E, por isso, todos aqueles que se beneficiaram das doações fantasmas ou da evasão fiscal devem ser responsabilizados, sim.

A falta de vínculo formal entre a pessoa usada e a pessoa escondida definitivamente não tem a menor importância.

A responsabilização daquela pelas obrigações desta, ou vice-versa, se deve à sanção mais elementar que pode resultar do uso sombrio da personalidade jurídica alheia: a desconsideração da personalidade jurídica de ambas as pessoas!

Ninguém pode se valer dos limites legais quando propriamente os extrapola.

Embora as personalidades jurídicas sombrias pareçam tão comuns quanto as sombras da psique, a tarefa do direito é mais fácil que a da psicanálise.

As sombras da personalidade humana ficam no inconsciente, nem a própria pessoa as conhece ao certo.

Já as fraudes jurídicas deixam sombras e rastros por todos os lados, basta procurá-los.

Bem menos complexo do que qualquer experiência freudiana ou junguiana.

FABIO DA ROCHA GENTILE é advogado e sócio do escritório BGR Advogados

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