Folha de S. Paulo


RENATO RIBEIRO DE ALMEIDA

Réus deveriam ser impedidos de assumir cargos na linha sucessória da Presidência da República? NÃO

EM DEFESA DA AUTONOMIA DOS PODERES

Diante das investigações sobre corrupção no âmbito da Operação Lava Jato surgiu o debate, tão delicado como intenso, sobre a possibilidade e a conveniência de o presidente do Senado ou da Câmara dos Deputados assumir ou se manter no cargo mesmo sendo réu de ação criminal no STF.

A situação tem gerado polêmica por conta de um equívoco na interpretação da Constituição sobre o suposto encadeamento de sucessores em caso de vacância do cargo de presidente da República. Rigorosamente, somente o vice sucede ao titular, como foi o caso de Michel Temer.

Os presidentes da Câmara, do Senado e do STF são substitutos temporários e provisórios (não sucessores), posto que assumem e convocam novas eleições, diretas ou indiretas, conforme esculpido na própria Constituição.

Nesse ponto, a diferença entre suceder definitivamente e substituir temporariamente é fundamental, já que somente o vice, eleito junto com o titular, tem legitimidade para exercer o cargo até o fim do mandato.

Sob a perspectiva política, sempre teremos uma situação desconfortável e que tende a ser explorada à exaustão pela mídia, pela oposição e por segmentos mais engajados da população. Mas, alheio à esfera moral e política e ao julgamento popular, à luz exclusivamente da Constituição, entendo que deve prevalecer, em um Estado de Direito, o comando da presunção de inocência.

Para compreender a questão, é conveniente fazer uma ponte com a elegibilidade, tema central do direito eleitoral. A restrição ao direito de ser votado é tida, mesmo com o advento da Lei da Ficha Limpa, como medida extrema.

Por essa razão, ainda que em processo criminal, somente após condenação por órgão colegiado é que se pode falar rigorosamente em inelegibilidade. E como a elegibilidade é uma exigência que se aufere exclusivamente no momento do registro da candidatura, uma eventual condenação durante o exercício do mandato não ensejará óbice ao exercício do cargo.

Se para ser candidato e exercer o mandato a regra é a Lei da Ficha Limpa, não parece ser coerente criar regras ainda mais severas para a assunção ou permanência na presidência de uma casa legislativa.

Criaria-se, assim, nova condição de elegibilidade para eleições internas do Poder Legislativo, que é autônomo. Ademais, a mera condição de réu não constitui certeza da condenação, a qual somente poderá ser confirmada mediante processo justo e condizente com o direito da ampla defesa e do contraditório.

A propósito, privar um cidadão de sua elegibilidade ou um congressista de assumir a presidência de uma casa legislativa apenas por figurar como réu de ação criminal é possibilidade que somente existiu durante o período mais severo da ditadura militar.

Bastava denúncia efetuada pelo Ministério Público e recebida por autoridade judicial para que ocorresse tanto a privação do direito à elegibilidade como a cassação de mandato. A medida foi usada para restringir o acesso de pessoas "indesejadas" a cargos públicos naquele momento.

Atualmente, dado o garantismo eleitoral previsto pela Constituição de 1988, para que seja declarada a inelegibilidade é imperativo passar pelo devido processo legal. A restrição à capacidade de assumir mandato só é aplicada após uma condenação em segundo grau de jurisdição.

No caso dos congressistas federais, que possuem prerrogativa de foro, o afastamento seria possível apenas a partir de decisão proferida pelo STF.

É conveniente, pois, respeitar as escolhas autônomas dos Poderes quanto às suas chefias. Da mesma forma, a sociedade brasileira não pode correr o risco de se transformar em uma sociedade que legisla por interesses pontuais e mirando pessoas específicas.

RENATO RIBEIRO DE ALMEIDA é advogado e professor de direito eleitoral da Universidade Anhembi Morumbi. É membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e colaborador do Instituto Não Aceito Corrupção

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