EM DEFESA DA AUTONOMIA DOS PODERES
Diante das investigações sobre corrupção no âmbito da Operação Lava Jato surgiu o debate, tão delicado como intenso, sobre a possibilidade e a conveniência de o presidente do Senado ou da Câmara dos Deputados assumir ou se manter no cargo mesmo sendo réu de ação criminal no STF.
A situação tem gerado polêmica por conta de um equívoco na interpretação da Constituição sobre o suposto encadeamento de sucessores em caso de vacância do cargo de presidente da República. Rigorosamente, somente o vice sucede ao titular, como foi o caso de Michel Temer.
Os presidentes da Câmara, do Senado e do STF são substitutos temporários e provisórios (não sucessores), posto que assumem e convocam novas eleições, diretas ou indiretas, conforme esculpido na própria Constituição.
Nesse ponto, a diferença entre suceder definitivamente e substituir temporariamente é fundamental, já que somente o vice, eleito junto com o titular, tem legitimidade para exercer o cargo até o fim do mandato.
Sob a perspectiva política, sempre teremos uma situação desconfortável e que tende a ser explorada à exaustão pela mídia, pela oposição e por segmentos mais engajados da população. Mas, alheio à esfera moral e política e ao julgamento popular, à luz exclusivamente da Constituição, entendo que deve prevalecer, em um Estado de Direito, o comando da presunção de inocência.
Para compreender a questão, é conveniente fazer uma ponte com a elegibilidade, tema central do direito eleitoral. A restrição ao direito de ser votado é tida, mesmo com o advento da Lei da Ficha Limpa, como medida extrema.
Por essa razão, ainda que em processo criminal, somente após condenação por órgão colegiado é que se pode falar rigorosamente em inelegibilidade. E como a elegibilidade é uma exigência que se aufere exclusivamente no momento do registro da candidatura, uma eventual condenação durante o exercício do mandato não ensejará óbice ao exercício do cargo.
Se para ser candidato e exercer o mandato a regra é a Lei da Ficha Limpa, não parece ser coerente criar regras ainda mais severas para a assunção ou permanência na presidência de uma casa legislativa.
Criaria-se, assim, nova condição de elegibilidade para eleições internas do Poder Legislativo, que é autônomo. Ademais, a mera condição de réu não constitui certeza da condenação, a qual somente poderá ser confirmada mediante processo justo e condizente com o direito da ampla defesa e do contraditório.
A propósito, privar um cidadão de sua elegibilidade ou um congressista de assumir a presidência de uma casa legislativa apenas por figurar como réu de ação criminal é possibilidade que somente existiu durante o período mais severo da ditadura militar.
Bastava denúncia efetuada pelo Ministério Público e recebida por autoridade judicial para que ocorresse tanto a privação do direito à elegibilidade como a cassação de mandato. A medida foi usada para restringir o acesso de pessoas "indesejadas" a cargos públicos naquele momento.
Atualmente, dado o garantismo eleitoral previsto pela Constituição de 1988, para que seja declarada a inelegibilidade é imperativo passar pelo devido processo legal. A restrição à capacidade de assumir mandato só é aplicada após uma condenação em segundo grau de jurisdição.
No caso dos congressistas federais, que possuem prerrogativa de foro, o afastamento seria possível apenas a partir de decisão proferida pelo STF.
É conveniente, pois, respeitar as escolhas autônomas dos Poderes quanto às suas chefias. Da mesma forma, a sociedade brasileira não pode correr o risco de se transformar em uma sociedade que legisla por interesses pontuais e mirando pessoas específicas.
RENATO RIBEIRO DE ALMEIDA é advogado e professor de direito eleitoral da Universidade Anhembi Morumbi. É membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e colaborador do Instituto Não Aceito Corrupção
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