Folha de S. Paulo


Camila Asano e Jefferson Nascimento

Vocação de protagonista, atitude de coadjuvante

Delegações de dezenas de países se reunirão, até a próxima sexta (26), em Genebra, na Suíça, para a segunda Conferência dos Estados Partes do Tratado sobre o Comércio de Armas, o primeiro a regular as transferências globais de armas e munições convencionais (categoria que inclui desde pistolas até tanques e aviões de combate).

Apesar de ser o quarto maior exportador mundial de armas pequenas, as que mais matam no mundo, o Brasil participará da reunião apenas como observador, sem a possibilidade de influenciar os rumos e o funcionamento do tratado.

E não é por falta de vontade política, que já foi suficientemente demonstrada com a rápida assinatura do acordo, em junho de 2013. O que falta, aqui, é coerência e sentido de urgência.

O texto do TCA (Tratado sobre o Comércio de Armas) tramita há quase dois anos no Congresso. Antes disso, o processo ficou parado por 17 meses nos despachos do Executivo.

Não é um atraso trivial. A política que regula as transferências brasileiras de armas e munições foi elaborada em 1974, durante a ditadura militar, e é até hoje sigilosa.

Por conta disso, é extremamente difícil saber, por exemplo, se armas brasileiras estão abastecendo conflitos ou governos autoritários em outras partes do mundo -e os poucos indícios disponíveis mostram que elas estão.

Dados compilados pela ONU apontam para um crescimento da ordem de 171% no valor de exportação de armas pequenas e munições pelo Brasil desde 2006.

Nos últimos anos, surgiram denúncias de armas e munições proibidas fabricadas no país encontradas no Iêmen, que vive uma cruel guerra civil e onde 3.000 civis já foram mortos desde janeiro de 2015.

A própria ONU encontrou armas brasileiras na Costa do Marfim, que está sob embargo do Conselho de Segurança. As informações precisas sobre esses casos seguem ocultas pela bruma do secretismo.

Esse é o grande trunfo do Tratado sobre Comércio de Armas: desnudar um mercado até então blindado, obrigando os Estados Partes a apresentarem relatórios anuais sobre importações e exportações.

Até então, o único controle sobre essas transações internacionais era feito pela ONU, mas a adesão era voluntária.

Como exposto pelo editorial desta Folha em 3/8, países como o Brasil se esquivavam atrás dos argumentos de proteção comercial e da segurança nacional para sonegarem dados de interesse público e de grande impacto em direitos humanos (e que por isso, vale dizer, não estão amparados pelas exceções previstas na Lei de Acesso à Informação).

Para além do impacto brutal que o comércio irresponsável de armas tem na vida de milhões de pessoas em todo o mundo, o governo e o Congresso parecem não ver o fato de que hoje, no mundo, a transparência é regra e quem não se adequar aos novos padrões internacionais ficará fora do grupo que estabelecerá os parâmetros desse mercado - um "clube" que já conta com países como Reino Unido, França, Alemanha, Espanha e Itália.

Enquanto a ratificação do TCA não vem, o país terá de se acomodar ao papel de coadjuvante -ainda que pudesse, se quisesse, ser protagonista.

CAMILA ASANO é coordenadora de política externa da ONG Conectas Direitos Humanos

JEFFERSON NASCIMENTO é assessor do programa de política externa da ONG Conectas Direitos Humanos

PARTICIPAÇÃO

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