Folha de S. Paulo


VERA LUZ

Transformar Minhocão em parque permanente é a melhor opção para São Paulo? Não

RESTAURAÇÃO COMO MEDIDA DE FUTURO

O Minhocão é uma aberração urbana desde sua origem, exemplarmente autoritária. Prestigia o viário de passagem acima de todas as outras questões urbanas mais importantes, como a qualidade de vida de milhares de pessoas ao redor.

Áreas históricas se constroem coletivamente no tempo, sujeitas a intervenções de novos pactos do presente. Imagens dos pintores Jean Baptiste Debret e Edwin Henry Landseer e do fotógrafo Militão Augusto de Azevedo nos fazem meditar sobre a responsabilidade de agir no tecido histórico e enfrentar a pulsação de um presente que faça sentido. Por vezes é preciso ir para trás para poder avançar.

O centro é uma representação simbólica insubstituível que deve ser confirmada pelo uso includente de sociabilidades máximas, vigorosas e mesmo conflitantes. Os espaços públicos –sistema de calçadas, praças e parques– ancoram a vida urbana cotidiana e momentos de excepcionalidade.

O território urbanizado tem complexidade sistêmica e técnica em sua competência de articular infraestruturas diversas e conjuntos edificados. Privilegiar um sistema em detrimento dos demais faz padecer esse organismo e o desvincula de seus fundamentos. No centro histórico isso se torna muito grave.

Priorizar carros na estrutura suspensa estigmatizou o tecido em volta do Minhocão, debilitando os usos predominantemente residenciais e comerciais da região. O tamponamento da área inferior pelo viaduto descaracterizou o sistema de espaços públicos, em prejuízo da qualidade de vida.

O Plano Diretor recém-aprovado deu um passo importante ao preconizar a desativação viária do elevado. Estudos da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) afirmam que o trânsito não se inviabilizaria por essa medida. A isso somam-se a evidente necessidade de alívio da utilização do transporte automotivo e o incremento de sistemas coletivos e alternativos.

Há ainda a possibilidade de reurbanização da calha ferroviária, como apontou o projeto Ligação Leste-Oeste, que elaborei com outros quatro colegas em 2006. O Ministério Público decidiu pela inadequação do uso da carcaça do elevado como área de lazer por motivos de incomodidade e segurança.

Do ponto de vista técnico-orçamentário, o desmonte do Minhocão é perfeitamente exequível, sem transtornos aos habitantes. Custaria R$ 28 milhões e, com o reaproveitamento dos materiais, poderia ser uma operação de lucro.

Já o High Line de Nova York, um parque elevado numa linha de trem desativada, custou aproximadamente US$ 240 milhões (cerca de R$ 820 milhões). Essa anomalia, nesse caso uma inadequação completa, é erro histórico felizmente restaurável.

A área central é única. Não merece naturalizar por costume camadas equivocadas. Não se trata da utilização viária, mas de morfologia urbana nociva, não confundível com modelos de parque suspenso de articulação urbana totalmente diversa.

Aqui no Brasil, a opção pelo parque seria um grande equívoco. Além de onerosa restauração estrutural, haveria necessidade de grandes investimentos em elementos de segurança, acessos e rotas de fuga, manutenção e refeitura de impermeabilização periódica.

Os pavimentos superiores dos edifícios estão próximos em calha estreita e confinada, o que geraria uma relação promíscua e conflitiva dos moradores dos prédios com o público do parque.

Toda a extensão de 3,4 km embaixo do Minhocão, mesmo com paliativos recortes para focos de luz natural e ar, seria condenada a um suburbanismo desqualificado para os térreos dos edifícios e demais espaços públicos centrais.

VERA LUZ, 60, é arquiteta e professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Integra o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo

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