Folha de S. Paulo


César Muñoz e Maria Laura Canineu

Uma guerra sem sentido no Brasil

No dia 2 de fevereiro de 2014, a policial militar Alda Castilho, de 27 anos, morreu depois que suspeitos de tráfico de drogas abriram fogo contra sua guarnição em uma favela do Rio de Janeiro. "Sua morte foi em vão", disse-nos sua mãe, Maria Rosalina da Silva, no mês passado.

Alda foi uma das quase 60 mil vítimas de homicídio no Brasil em 2014. Não se sabe quantas foram mortas nas mãos de traficantes. Em Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, três municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, cerca de 400 dos 480 homicídios registrados em 2014 estavam relacionados ao tráfico de drogas, segundo estimativa de Fábio Barucke, chefe da delegacia de homicídios na região.

A abordagem brasileira de criminalização da produção e distribuição de drogas alimentou o crescimento de organizações criminosas e enfraqueceu o Estado de Direito.

A "guerra às drogas" é a principal razão das operações policiais nas favelas, que frequentemente resultam em mortes.

Dados oficiais apontam que a polícia brasileira matou mais de 3.000 pessoas em 2014. Embora a polícia comumente declare que as mortes decorreram de confrontos com criminosos, a Human Rights Watch documentou dezenas de casos na última década nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo com fortes indícios de que as mortes foram verdadeiras execuções extrajudiciais. Promotores e policiais do Rio de Janeiro disseram à Human Rights Watch que em alguns de esses casos policiais corruptos envolvidos com o tráfico de drogas foram os autores das execuções.

A "guerra às drogas" no Brasil não somente contribuiu para o aumento dos homicídios e o fortalecimento das facções criminosas. As drogas são hoje mais abundantes e potentes do que na década de 1970, quando os Estados Unidos começaram a pressionar o resto do mundo a combater o comércio ilegal de narcóticos.

Alguns policiais são conscientes de que as operações contra às drogas só enxugam gelo. O major da Polícia Militar, Roberto Valente, comandante da UPP Providência no Rio de Janeiro, por exemplo, nos disse que se um "radinho," membro do baixo escalão do tráfico, é preso, ele será recompensado pela facção criminosa com uma arma e uma promoção, assim que for solto.

Frequentemente os grandes traficantes simplesmente continuam a conduzir seus negócios de dentro da prisão. Se a polícia mata um deles, outro assumirá seu lugar antes mesmo do cadáver esfriar.

Com tantas consequências nefastas do combate às drogas, o Brasil deveria defender uma nova abordagem em uma sessão especial da Assembleia Geral da ONU sobre o tema, que tem início hoje em Nova York. É hora de descriminalizar a posse de drogas para o consumo pessoal e considerar seriamente sua legalização.

Os opositores da descriminalização argumentam que a medida causaria um aumento no consumo de drogas, mas as experiências de outros países não confirmam essa alegação. Em Portugal, onde a posse de drogas para o consumo pessoal foi descriminalizada há 15 anos, o número de dependentes de drogas diminuiu, assim como caíram a transmissão do vírus HIV entre usuários de drogas e as taxas de encarceramento.

Alguns países estão inclusive fazendo experimentos com a legalização da produção, distribuição e uso da maconha, a mais usada das drogas ilegais. Resultados preliminares sugerem que essa medida poderia reduzir o lucro dos traficantes de drogas sem que para isso seja necessário o disparo de um único tiro. O Brasil deve considerar seguir esse caminho.

Uma nova abordagem à questão das drogas pode levar a uma economia de milhões de reais que poderiam ser utilizados em tratamentos contra a dependência química e em ações para prevenção da violência.

Mais importante ainda, a medida poderia salvar milhares de vidas todos os anos. Está mais do que na hora de acabar com a atual política sem sentido.

CÉSAR MUNOZ é pesquisador da Human Rights Watch para o Brasil

MARIA LAURA CANINEU é diretora da Human Rights Watch para o Brasil

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