Querida presidente Dilma, escrevo após a triste votação na Câmara dos Deputados que autorizou a abertura do processo de impeachment de seu mandato.
Já me declarei publicamente contra o eventual (no momento, quase certo) impedimento, motivado por argumentos duvidosos e conduzido por uma Câmara cujo presidente, Eduardo Cunha, é réu no Supremo Tribunal Federal, sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro.
O que mais me entristeceu, presidente, foi sua declaração de que, depois de efetuado o golpe que pretende destituí-la da Presidência, a senhora será uma "carta fora do baralho". Bem, fora desse baralho ensebado, feito de cartas marcadas, a senhora estará, sim. Por conta de seus méritos, não de seus defeitos.
O lugar que ocupará na história do país, porém, está garantido, presidente Dilma, e será positivo. Não listarei as virtudes de seu governo, entre as quais o fato óbvio, não reconhecido por seus detratores, de que, pela primeira vez "na história deste país", um governante não usou de seus poderes de manipulação e chantagem para evitar a investigação de crimes envolvendo seu partido. Será que ninguém se pergunta por que a Lava Jato, apesar de sua evidente falta de imparcialidade, nunca encontrou obstáculos durante seu mandato?
O que a coloca definitivamente, a meu ver, como personagem fundamental na história do Brasil foi o fato de a senhora ter sido responsável pela criação da Comissão Nacional da Verdade.
Sei que a lei que instituiu a comissão foi votada pelo Congresso Nacional, mas não somos ingênuos de pensar que os deputados e senadores fariam isso por conta própria. Foi preciso que o país elegesse para presidente uma mulher corajosa, que militou contra a ditadura, foi presa e torturada (sem delatar companheiros), para que se criasse, com muito atraso em relação aos outros países latino-americanos, uma Comissão da Verdade no Brasil.
Antes tarde do que nunca. Em função dessa demora, todavia, a reação da sociedade brasileira à divulgação de nossos trabalhos foi decepcionante. Foram poucas as manifestações públicas de apoio.
Com exceção dos incansáveis grupos de familiares dos mortos e desaparecidos, a sociedade não se mobilizou para exigir que o Estado brasileiro revelasse as condições da morte e a localização dos corpos dos 243 desaparecidos políticos.
Assim, as Forças Armadas não se sentiram moralmente obrigadas a admitir a participação de agentes do Estado em crimes de tortura, assassinatos e ocultação de cadáveres.
Assistimos, consternados, à presença de alguns (poucos) jovens, no mínimo ignorantes, a ostentar cartazes em favor de uma "intervenção militar" no país. Como se autoritarismo e repressão fossem sinônimos de ordem e paz social, e não o contrário.
E agora, a provar que a história se repete como farsa, nos vemos diante da iminência de uma nova catástrofe: a cassação de uma presidente séria, comprometida com o combate à corrupção, por uma Câmara comandada por um deputado acusado de vários crimes e repudiado pela população.
Talvez o pior não aconteça. Talvez o Brasil acorde durante o julgamento no Senado e perceba a gravidade do que está por vir. Ou então assistiremos, estarrecidos, à repetição de um golpe em nome da moralidade pública.
MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora de "Processos Primários" (Estação Liberdade)
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