Folha de S. Paulo


ANDRÉ BARCINSKI

Coisa de cinema

Publicado nesta seção, o artigo "Pela legalidade", em que o ator Wagner Moura critica o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, é uma aula de cinema. A exemplo dos melhores cineastas e roteiristas, Moura criou uma narrativa fantástica que serve totalmente ao gosto de seu público-alvo. Um sucesso garantido.

O autor e roteirista Elmore Leonard recomendava a iniciantes: "Omita partes da história que seus leitores tendem a pular". Moura seguiu o conselho à risca e suprimiu vários fatos que poderiam atrapalhar o roteiro e desagradar ao público. O petrolão é um deles. A prisão de diversos políticos e empreiteiros ligados ao governo é outro.

Todo "thriller" político precisa de um mocinho, um personagem puro e destemido, que enfrente o mal de peito aberto. E aqui Moura criou uma heroína clássica, Dilma Rousseff, injustamente acusada de pedaladas fiscais (e de mais nada, segundo o roteiro). Prova da inocência de Dilma, ainda segundo o diretor, é que "seu nome não consta da lista, agora sigilosa, da Odebrecht". Ufa!

Mas essa história não teria graça sem um grande vilão, e Moura escolheu o seu: o juiz Sergio Moro, descrito como uma espécie de Darth Vader, um tirano que defende o lado negro da Força.

O público de cinema adora odiar um bom bandido, e ninguém quer saber se ele possui qualidades redentoras, como participar de uma operação que prendeu dezenas de réus confessos, conseguiu 93 condenações criminais e recuperou quase R$ 3 bilhões surrupiados. Para que deixar fatos estragarem uma boa história, não é mesmo, diretor?

É impossível, no entanto, discordar do roteiro de Moura quando diz que "um pedido de impeachment aceito por um político como Eduardo Cunha, que o fez não por dever de consciência, mas por puro revide político, é teatro do absurdo".

Ele tem toda razão. Ainda bem que o diretor teve o bom senso de não lotar sua história de outras cenas surrealistas, como sítios e apartamentos de luxo habitados por fantasmas e uma presidente que convida um investigado pela Justiça para ocupar um cargo no alto escalão no governo. Afinal, isso aqui não é filme de Luis Buñuel, certo?

O roteiro de Moura é um "thriller" político calcado no realismo, mas se permite voos criativos que o aproximam de outros gêneros.

Quando o roteiro diz que "a luta contra a corrupção foi também o mote usado pelos que apoiaram o golpe em 1964", o diretor compara pessoas que não aceitam a corrupção atual com as que apoiaram a ditadura, o que tornaria o filme uma sátira absurdista nos moldes de "Diabo a Quatro" (1933), clássico do escracho em que Groucho Marx vira o presidente de Freedonia.

A narrativa de Moura remete também ao cinema anticomunista e paranoico feito nos EUA nos anos 50. Depois de admitir que "o PT montou um projeto de poder amparado por um esquema de corrupção", define o impeachment não como um instrumento previsto na Constituição, mas como "uma tentativa [...] de derrubar na marra, via Judiciário politizado, um governo eleito por 54 milhões de votos. Um golpe clássico".

Se o roteiro de Wagner Moura tem uma falha grave, é ignorar um personagem que poderia adicionar drama e tensão à história: Lula. O ex-presidente virou uma espécie de Norma Desmond, a atriz que Gloria Swanson interpretou em "Crepúsculo dos Deuses" (1950), de Billy Wilder: antes famoso e influente, hoje não diz coisa com coisa e vive da caridade dos amigos.

ANDRÉ BARCINSKI, 48, é crítico da Folha e autor do livro "Pavões Misteriosos" (Três Estrelas)


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