Folha de S. Paulo


Jean Le Corre

Burocracia pública, burocracia privada

O Brasil é conhecido por sua intensa burocracia na esfera pública. Costumamos reclamar das suas manifestações no nosso dia a dia, como: leis trabalhistas complicadas, ou sistema tributário incompreensível.

Mas, ao olharmos dentro das nossas empresas, encontramos também muita burocracia. Alguns dos sintomas mais comuns: processos desnecessários ou demorados, fragmentação de responsabilidades, formalismo excessivo, avalanche de pedidos de informação, clientes frustrados e equipes desmotivadas.

Burocracia corporativa é um fenômeno amplo, que afeta organizações ao redor do mundo. Não é raro ver executivos desperdiçarem 70% do seu tempo em atividades de reporte e reuniões improdutivas. Ao final, apenas 30% do tempo está disponível para, de fato, gerenciar suas equipes.

Seria engraçado, se não fosse lamentável: o acúmulo de regras, processos, métricas e controles corporativos traz graves impactos negativos.

A proliferação de normas e a fragmentação da organização tendem a diminuir a responsabilidade das equipes: torna-se mais fácil culpar uma regra ou outras "caixinhas" da organização por uma falha ou demora de processo.

Elas também reduzem espaço de manobra e tiram o poder da hierarquia: como tomar decisões importantes, se existe sempre o risco de não cumprir uma das regras? No limite, cria-se uma "dependência invertida" dos gestores em relação às suas equipes, que podem sempre invocar alguma regra ou processo para justificar suas ações.

Às vezes, pretende-se combater os sintomas (produtividade baixa e desengajamento) com iniciativas de "mudança cultural" e motivação. Elas são geralmente recebidas com merecida desconfiança e produzem resultados limitados.

No Brasil, muitas empresas têm desenvolvido uma cultura de controle e burocracia, tanto devido ao seu ambiente externo, como por preocupação com compliance. Ora, em um ambiente de estagnação, reduzir a burocracia é uma alavanca poderosa para criar valor.

Porém, para diminuí-la com efeitos visíveis em performance, é preciso mudar nossa forma de olhar a organização e "desaprender" técnicas tradicionais de gestão; reconhecer que a burocracia nasce geralmente com boas intenções, mas torna-se uma resposta inadequada perante a complexidade atual e as contraditórias demandas enfrentadas pelas empresas; focar mais em fenômenos como autonomia, cooperação e engajamento –e menos em estruturas, processos ou scorecards.

Mas a mesma cultura brasileira, que às vezes parece favorecer o florescimento dessa burocracia, também apresenta traços favoráveis à simplificação das coisas: flexibilidade e capacidade de ajuste, empatia e facilidade para cooperar, tolerância à ambiguidade.

O "jeitinho brasileiro", apesar das suas ressonâncias negativas, pode tornar-se uma vantagem para evitar que a complexidade crescente do ambiente externo das empresas traduza-se em complicação no seu ambiente interno.

Aliás, vários exemplos comprovam que burocracia não é uma fatalidade: algumas empresas brasileiras operam com um nível relativamente baixo de burocracia, mesmo lidando com um portfólio de mercados, produtos, marcas e canais; ou com normas e regras complexas devido ao seu mercado de atuação. Diversos grupos familiares mantêm uma cultura pouco burocrática, apesar do seu diversificado portfólio de negócios.

Certamente há muito a fazer –inclusive, para melhorar o ambiente externo. Mas temos como realizar essa revolução "de dentro para fora" nas empresas e, aos poucos, vencer o monstro burocrático.

JEAN LE CORRE, 49, sócio da consultoria BCG - The Boston Consulting Group

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