Folha de S. Paulo


Ronaldo Porto Macedo Junior

Livro de Hitler deve ser proibido no Brasil? Não

UM ERRO DIGNO DE REFLEXÃO

A recente decisão cautelar do juízo da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro proibindo, cautelarmente, a circulação, exposição e divulgação do livro "Minha Luta", de Adolf Hitler, é um notável erro e, como tal, digno de reflexão. Ela é um claro exemplo de censura em razão do conteúdo, o que está em desacordo com o princípio constitucional da liberdade de expressão.

A decisão carioca baseia-se no artigo 20 da lei nº 7.716/89, que estabelece pena de reclusão de um a três anos para quem "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". O ponto é que práticas discursivas são uma forma de ação social, mas de um tipo especial. Estão protegidas pela liberdade de expressão.

É proibida a discriminação de pessoas com base em raça, religião ou grupo étnico. Mas seria crime expressar e defender ideias preconceituosas? Defender ideias que pareçam discriminatórias por alguns não equivale a praticar diretamente a discriminação.

Ações discursivas merecem distinção, embora possam existir situações de difícil diferenciação. Daí a atenção que se deve prestar ao significado de incitar, induzir ou praticar diretamente a discriminação.

É importante também que se reconheça que não temos o direito de não sermos ofendidos pelas ideias alheias, por mais ofensivas que possam nos parecer. O princípio constitucional da liberdade garante a livre expressão de ideia e opiniões na esfera pública.

Essa liberdade baseia-se parcialmente em argumentos consequencialistas, como, por exemplo, garantir o pleno exercício do teste dos argumentos no mercado de ideias, estimular a crítica, reduzir os riscos do pensamento errado e autoritário etc. Tais consequências são também úteis porque fortalecem o regime democrático e pluralismo.

O livro "Minha Luta", de Hitler, é um documento relevante diretamente relacionado a um dos episódios mais importantes e nefastos da história do século 20. Impossível imaginar que historiadores sérios possam desconhecê-lo ou sejam proibidos de conhecê-lo.

Afinal, a que tipo de consequência real se presta a proibição da Justiça carioca? Ela não acabaria por gerar uma limitação do próprio debate das ideais defendidas no livro? Ademais, qual é a real consequência da proibição de comercialização de um livro que há anos é vendido no Brasil e que pode ser obtido, em inúmeras traduções, com imensa facilidade na internet?

Será a proibição um bom serviço ao combate à discriminação contra judeus e outros grupos ofendidos pelas ideias de Hitler? O combate a tais ideias no âmbito da esfera pública, com a publicação de edição crítica da obra, serve melhor a tais objetivos de questionamento e refutação.

Censurar o livro contraria também os argumentos "de princípio" que fundamentam a liberdade de expressão. Esta justifica-se pela exigência de proteção da autonomia e autenticidade das convicções pessoais, fundantes da garantia da dignidade humana. Afinal, um indivíduo vê sua autonomia pessoal e dignidade desrespeitadas quando suas convicções não podem ser colocadas em discussão no debate público.

Para muitos, a própria Bíblia veicula ideias que parecem preconceituosas hoje em dia. Faria sentido, no entanto, censurar partes do livro sagrado, discursos de líderes religiosos ou o próprio papa com o argumento de que eles "incitam" a discriminação?

Muitos autores também argumentam corretamente que a censura violaria o princípio da democracia por não permitir que ideias minoritários participem do debate público.

Por fim, a decisão revela ainda um equívoco de matriz institucional: o perigoso otimismo na crença de que "vigilantes das boas ideias", de toga ou não, serão razoáveis, capazes e competentes para proteger a sociedade de opiniões preconceituosas. Neste ponto, a ingenuidade otimista, bem-intencionada ou não, une-se ao moralismo paternalista, ao autoritarismo e, de novo, ao preconceito.

RONALDO PORTO MACEDO JUNIOR, 53, é procurador de Justiça em São Paulo, professor titular de ética e filosofia do direito da Faculdade de Direito da USP e professor de teoria do direito da ética, teoria e filosofia do direito da FGV - Fundação Getulio Vargas

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