Folha de S. Paulo


Hussein Kalout

Indicação de Israel afronta Brasil

O episódio da controversa indicação do político e colono israelense Dani Dayan ao posto de embaixador de Israel em Brasília ainda não chegou ao fim. O governo Netanyahu não retirou oficialmente a indicação, apesar dos claros sinais de que o Brasil não irá aceitá-la.

A nomeação de Dayan desafia, principalmente, duas lógicas fundamentais, uma inerente ao arcabouço das relações diplomáticas entre Brasil e Israel e a outra concernente ao histórico posicionamento brasileiro sobre o conflito israelo-palestino.

No que diz respeito à primeira lógica, o governo Netanyahu cometeu um erro protocolar grave ao anunciar o seu indicado pelo Twitter, sem submeter inicialmente a indicação ao governo brasileiro, como dita a praxe diplomática. Em diplomacia, procedimentos, regras e condutas importam, sobremaneira, e traduzem as intenções de quaisquer governos.

Troche

Nesse sentido, a indicação, que deveria servir para prestigiar as relações diplomáticas entre os dois países, representa uma afronta ao Brasil e lhe impõe o ônus de ter que desatar um nó desnecessário.

Mas, partindo do ingênuo princípio de que a indicação –ainda que atabalhoada– foi tomada com a melhor das intenções e considerando que o procedimento adotado foi meramente um ato falho, a concessão do "agrément" (aceitação oficial) implicaria à política externa brasileira, no mínimo, uma profunda contradição histórica.

Tradicionalmente, o Brasil sempre condenou, nos diversos foros internacionais, a política de ocupação ilegal dos territórios palestinos. Aceitar Dayan como embaixador plenipotenciário em Brasília contradiria o padrão de votação do Itamaraty no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU.

A atuação política e profissional de Dayan, ao advogar pela construção de assentamentos ilegais em área geográfica internacionalmente reconhecida como fronteira do território palestino ocupado, se encontra em flagrante descompasso com o direito internacional. Aceitar sua presença no Brasil seria concordar com sua premissa de negligenciar o direito de existência do Estado palestino.

Ademais, as consequências para a política externa brasileira seriam péssimas sob qualquer ângulo. O Brasil se colocaria numa posição vulnerável no contexto da comunidade internacional, com previsíveis prejuízos aos interesses do país no Oriente Médio.

Da mesma forma legítima que o governo Netanyahu escolheu Dani Dayan, o Brasil, soberanamente, pode não acolher a indicação, visto que em nenhuma convenção ou tratado internacional consta a obrigatoriedade de conceder o "agrément" a qualquer representante de qualquer governo estrangeiro.

A postura do Brasil é coerente com os princípios da política externa. Trata-se de uma decisão estudada cuidadosamente pelo Itamaraty. O manifesto suprapartidário assinado por 40 ex-embaixadores e diplomatas do quadro do serviço exterior brasileiro exprime essa coerência e reflete a tese de que a decisão emanou de uma política de Estado e não de uma objeção partidária como se tenta afirmar.

Diplomacia não tem sido o ponto forte da Era Netanyahu à frente do governo de Israel. Inconsistências, controvérsias e animosidades têm marcado sua política externa e isolado o país na arena internacional. Nas Américas, Netanyahu danificou as relações com os dois principais países do contexto hemisférico: Brasil e EUA.

Nesse sentido, a eventual retirada do nome de Dayan pelo governo israelense deveria ser vista não como uma vitória do Brasil, mas, sobretudo, daqueles que na sociedade israelense acreditam na paz como princípio fundamental.

Além disso, se o Brasil aprovasse a indicação de um embaixador de Israel vinculado aos assentamentos ilegais, teria dificuldade em rejeitar um enviado da Autoridade Palestina ligado ao Hamas e que não reconhecesse o direito de existência do Estado de Israel, por exemplo, se um dia essa descortesia também fosse praticada.

HUSSEIN KALOUT, 39, é cientista político e pesquisador do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade Harvard

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