Folha de S. Paulo


THOMAS TRAUMANN

A madeleine de Dilma

Na última vez em que tirou férias de verdade, no século passado, a presidente Dilma Rousseff foi com amigas por um roteiro de lugares ligados à vida e aos personagens do escritor francês Marcel Proust.

Aficionada pelo autor de "Em Busca do Tempo Perdido", Dilma é capaz de citar de cor trechos do livro no original e fala das características de Charles Swann, da duquesa de Guermantes e de madame Verdurin com a intimidade que muitos de nós usamos para tratar tios e primos.

Clássico, o livro é conhecido por quem nunca abriu uma página de seus sete volumes pelo episódio da madeleine, quando, a partir da mordida de um biscoito, o narrador evoca, involuntariamente, recordações de sua infância.

O processo de impeachment é a madeleine de Dilma.

A presidente da República gosta do enfrentamento, a palavra usada por ela para definir as situações de conflito. Reside aí a sua principal diferença com construtores de consensos, como Lula e Fernando Henrique Cardoso.

É no antagonismo que Dilma acredita ter vivido seus momentos mais gloriosos no Palácio do Planalto –as respostas aos protestos de junho de 2013 e as eleições de 2014.

A estratégia presidencial para repetir no processo de impeachment as superações de crise do seu primeiro mandato foi escolher um campo de batalha (o exagero de se afastar, por conta de uma manobra contábil, um presidente eleito) e um adversário (o presidente da Câmara, Eduardo Cunha). Como uma madeleine, a operação é reconfortante, mas é só memória afetiva.

Na vida como ela é, o confronto em torno do impeachment não é jurídico. A denúncia das "pedaladas" é só um pretexto. Também não é uma batalha de biografias, na qual Cunha perderia logo de início. A batalha do impeachment é sobre o Brasil de 2016, 2017 e 2018.

O destino de Dilma depende mais dela mesma do que da tabulação de votos no Congresso. É dela a responsabilidade de recuperar a confiança no país, abalada pelos rebaixamentos das notas das agências de classificação de risco.

Caso a presidente consiga convencer a sociedade de que é capaz de executar uma agenda de crescimento, controle da inflação e redução do desemprego, o impeachment se dissipa por si.

Caso não consiga, a ameaça de afastamento será uma tormenta hoje e por todo o mandato.

É justo? Não, mas, como a presidente Dilma gosta de repetir, a vida não é justa.

É como uma nova eleição, só que desta vez Dilma concorre sozinha. Em 2014, a presidente recebeu o voto de 54,5 milhões de brasileiros, prometendo um governo de mudanças.

Está claro, porém, que as mudanças entregues neste ano causaram só desalento e desencanto. Mesmo entre os defensores do governo, o ano de 2015 ficará como uma madeleine perturbadora.

Se, em busca do tempo redescoberto, Dilma reconectar a confiança de seus eleitores, e de ao menos parte dos não eleitores, ela recuperará a liderança do país. Caso contrário, aí sim estará aberta a janela para um governo Michel Temer ou uma nova eleição. Esse é o verdadeiro terceiro turno.

THOMAS TRAUMANN, 48, jornalista, foi ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (governo Dilma)

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