Folha de S. Paulo


EDITORIAL

Base frágil

Não começou nada bem o processo de formulação de um imprescindível currículo mínimo para a educação básica no Brasil.

A Base Nacional Comum Curricular (BNC) apresentada em setembro está longe de oferecer fundamento sólido para dar clareza a docentes e familiares sobre o que alunos têm o direito de aprender e escolas têm a obrigação de ensinar.

O documento de 300 páginas tem suscitado debates acalorados. Organizado pelo Ministério da Educação, contou com a participação de 116 especialistas -cuja identidade permanece desconhecida, o que no mínimo impede o público de aquilatar sua proficiência em matéria de tamanho significado social.

Reservaram-se de início três meses para a coleta de críticas e sugestões ao trabalho. A mobilização para debates nas escolas vai de 2 a 15 de dezembro. É pouco tempo.

A sistematização e a decisão sobre as propostas recebidas precisam ser concluídas até meados de junho de 2016, quando o currículo final deverá ser submetido ao Conselho Nacional de Educação.

Não está claro como será a revisão, nem quem cuidará dela. É crucial ampliar e dar mais transparência ao debate, para tirar a educação do péssimo nível em que se acha.
A BNC por ora se mostra mais parte do problema que da solução. Embora a defesa de uma base curricular comum se inspire nas experiências benignas de países como Austrália, Chile, EUA e Reino Unido, o que aqui se produziu difere delas em gênero, número e grau.

Seu propósito é estipular o que se deve aprender em cada nível de ensino, mas a proposta não chega a designar quanto do ano letivo deve ser dedicado a cada meta -e são centenas. Há uma vaga indicação de que 40% do tempo seria preservado para regionalizar o aprendizado, o que parece exagerado e soa mais como concessão à superestimada autonomia docente.

Outros currículos nacionais são mais prescritivos. Em Portugal, por exemplo, 56% da carga horária tem de ser obrigatoriamente dedicada a aulas de língua portuguesa e matemática. A diretriz lusa chega a indicar livros para cada faixa etária, uma lista com 676 páginas -o professor pode escolher que obras utilizar, mas não deixar de fazê-lo.

Quanto ao conteúdo propriamente dito da BNC, a área de linguagens e a de ciências humanas concentram o grosso das críticas que o documento vem recebendo.

Há muito menos problemas no campo da matemática e das ciências da natureza, setores em que o curso do aprendizado é mais estruturado, porque o avanço dos estudos pressupõe a aquisição prévia de competências definidas.

No caso das ciências humanas, o debate, amplamente desfavorável ao texto, concentra-se nas recomendações para o ensino de história -disciplina propícia às mais variadas contaminações ideológicas.

Os defeitos se concentram na excessiva valorização das histórias africana, latino-americana e ameríndia, em detrimento do clássico percurso que abrange Antiguidade, Idade Média, Renascimento, Modernidade e Era Contemporânea.

Nada há de errado em dedicar um pouco mais de atenção a civilizações asiáticas e pré-colombianas, ou para a miríade de reinos na África que a colonização e o tráfico negreiro desarranjaram.

A nova ênfase na BNC, todavia, foi longe demais, abandonando o fio condutor da temporalidade. Como entender a expansão marítima europeia, por exemplo, sem estudar antes a transição do mundo medieval para o Renascimento, com a explosão de conhecimento que garantiu aos colonizadores a superioridade tecnológica e bélica?

O ensino tradicional de história decerto necessita ser expurgado da carga positivista que se associa a essa sequência, em geral qualificada como marcha do progresso.

Por outro lado, omitir a transformação das ideias e as revoluções europeias, como o Iluminismo e a Revolução Francesa, implica privar os jovens de compreensão mais profunda sobre a origem de valores centrais no Brasil e alhures, como democracia representativa, liberdades civis e direitos humanos.

No capítulo das linguagens, nota-se a predominância de noções pedagógicas um tanto espontaneístas. Dá-se destaque demais a "práticas" (artístico-literárias, político-cidadãs, investigativas) e à "apropriação" de códigos, e de menos a ferramentas cruciais como ortografia, gramática e vocabulário.

Faz pouco sentido, no mundo atual, estipular que as crianças tenham de treinar caligrafia ou declamação. Mas será realmente necessário normatizar num currículo comum que elas precisem aprender a redigir mensagens em redes sociais e abaixo-assinados?

Não será neste espaço limitado que se resolverão todas as mazelas da BNC. Tal objetivo só poderá ser alcançado num debate aberto, com o concurso de especialistas reconhecidos -não de ideólogos anônimos- e de todas as entidades empenhadas em salvar a educação brasileira. Ainda há tempo.


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