Folha de S. Paulo


JOÃO MASSUD FILHO

A falaciosa droga contra o câncer

Há dias que a suposta droga contra o câncer produzida pela USP é debatida na mídia e nos meios científicos. O assunto é de extrema importância porque nos faz refletir sobre pontos frágeis no desenvolvimento de medicamentos no Brasil.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que o processo de desenvolvimento de uma droga demora de sete a dez anos (em média) em qualquer parte do mundo, desde a etapa inicial de sua descoberta (seja química ou por meio de plantas).

Pode, em muitos casos, ultrapassar em muito esse tempo (no caso do Taxol, importante quimioterápico, foram mais de 15 anos). De 10 mil moléculas inicialmente estudadas, apenas uma ou duas chegam ao mercado, depois de todos esses anos de estudos não clínicos e clínicos.

Daniel Bueno

Esse desenvolvimento é baseado em processos validados internacionalmente e aprimorados a cada ano. Assim, há necessidade absoluta de estudos não clínicos (em células e animais) e clínicos (em suas três fases). O método é reconhecido por todos os órgãos reguladores.

Por mais que os resultados não clínicos sejam promissores, não há justificativa científica para seu uso sem uma avaliação prévia de segurança e eficácia. Do contrário, corre-se o risco de a droga interagir negativamente no efeito da quimioterapia tradicional.

No caso específico da "droga da USP", há a necessidade de se percorrer um longo caminho de pesquisa para que ela possa estar disponível no mercado. O seu uso precoce é anticientífico (pois sem comprovação), antiético (sem nenhuma base clínica) e ilegal (não é aprovado pela Anvisa).

Há de se compreender o desespero das famílias em busca de alguma esperança para o tratamento do câncer. No entanto, cirurgias, quimioterapias e radioterapias têm se mostrado bastante úteis em diversas formas da doença e estão disponíveis em muitos centros do SUS.

Rotineiramente surge um novo tratamento miraculoso para a cura do câncer sem que haja, posteriormente, comprovação científica e aprovação dos órgãos reguladores. Este caso mais recente teve desdobramentos em todas as áreas.

Vemos a comunidade científica atônita, já que não foi consultada para avaliar os dados de segurança e eficácia –até porque inexistentes.

A Anvisa tornou-se impotente para tomar qualquer iniciativa após a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de liberar cápsulas de um composto experimental, a fosfoetanolamina, a pacientes com câncer.
O Conselho Nacional de Saúde, instância última da avaliação da ética em pesquisa, ficou em silêncio conveniente, pois não considera esse uso como uma pesquisa.

A USP permitiu que houvesse a distribuição da droga por muito tempo, sem que tomasse alguma atitude, seja para coibir ou, o melhor ainda, para permitir e incentivar o desenvolvimento correto de um novo medicamento, através de estudos não clínicos e clínicos.

O protagonismo messiânico de Gilberto Chierice, ex-professor do Instituto de Química da USP em São Carlos, que desenvolveu e distribuiu a substância para pacientes durante anos, vai contra os princípios da boa ciência.

O Judiciário avalizou o uso de uma droga sem comprovação científica e sem consulta prévia dos oncologistas e da Anvisa. Não nos cabe entrar na discussão jurídica, mas, mesmo partindo da premissa de que o paciente está em primeiro lugar (onde sempre deveria estar), ainda assim devemos levar em conta os riscos assumidos quando permitimos o acesso a drogas novas e não testadas previamente.

A pergunta inevitável permanecerá sem resposta: o que acontecerá se houver comprovação da toxicidade da "droga da USP" e mortes em decorrência dela? Quem serão os responsáveis?

JOÃO MASSUD FILHO, 67, é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica

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