Folha de S. Paulo


FERNANDO COTAIT MALUF e PHILLIP SCHEINBERG

As chances perdidas na pesquisa clínica

Nas últimas décadas, a ciência conseguiu importantes avanços na pesquisa básica, aquela que ocorre nas bancadas dos laboratórios. Esses progressos, no entanto, não se traduziram em grandes benefícios, conforme se imaginava, em particular para os pacientes com câncer.

Hoje já podemos realizar o sequenciamento genético de todo o DNA humano, analisar células individualmente, desvendar o complexo funcionamento do sistema de defesa do corpo e identificar as principais proteínas responsáveis pela sobrevivência das células tumorais. Era de se esperar, então, que tivéssemos alcançado melhorias mais expressivas em prevenção e tratamento dos tumores.

Daniel Bueno

O período de desenvolvimento de uma droga, que contempla desde a sua descoberta até o uso na clínica, variava entre 15 e 20 anos. Hoje, em muitos casos, esse período já caiu pela metade. Com isso, muitos pacientes já podem se beneficiar dessas novas drogas em estudos clínicos antes de sua aprovação. Mas esse cenário não se repete no Brasil.

A morosidade na aprovação de estudos inviabiliza que o país participe de pesquisas que dariam acesso aos pacientes a tratamentos que poderiam permitir a cura, maior sobrevida ou qualidade de vida.

Muitas vezes os responsáveis pela pesquisa nem sequer contemplam os centros nacionais para participar de estudos globais pelo simples fato de que esses estudos competitivos terminariam antes de serem iniciados no Brasil.

No centro do problema está o requerimento de aprovação pela Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), bem como a admissão pelos comitês de ética em hospitais e universidades. Esse processo duplica a necessidade de aprovação ética e, assim, deixa o Brasil de fora de importantes inovações terapêuticas, tornando-o um mero importador de informações científicas.

Outro ponto é que os pacientes que já não respondem mais aos tratamentos convencionais perdem a chance de ter acesso aos medicamentos mais inovadores, que poderiam fazer uma diferença significativa no prognóstico. Portadores de tumores muito agressivos, cujas respostas aos tratamentos existentes são baixas, poderiam se beneficiar de medicamentos promissores.

Por falta de acesso aos protocolos clínicos, perdemos a chance de aprender novas possibilidades terapêuticas, prejudicando a formação e atualização do profissional. A falta de experiência se aplica também ao conhecimento científico, uma vez que o médico deixa de ter acesso aos novos dados, que poderiam levar à geração de novas ideias, novas soluções para quadros clínicos hoje sem resposta.

A própria experiência administrativa na organização de estudos desse porte no Brasil acaba sendo perdida por falta da participação do país em pesquisas globais. Uma consequência desse cenário é a baixa produção científica clínica.

Para agravar, os entraves burocráticos e alfandegários na importação de medicamentos e insumos sem priorização atrasam ainda mais o início de estudos no Brasil.

No afã de se mostrar mais rigorosa em seus controles, a Conep permitiu que estudos tramitassem às vezes por mais de ano, impossibilitando o acesso a novas pesquisas clínicas no Brasil. Este período de análise pela Conep é da ordem de dez vezes o observado em vários países europeus, por exemplo.

A atuação dessa comissão necessita urgentemente de uma revisão de comportamento funcional, se quiser reverter esse cenário. O tempo de todo o processo de aprovação das pesquisas de protocolos clínicos no Brasil não deveria passar de dois a três meses. Para isso, basta haver vontade política e uma profunda reestruturação.

Sociedade e paciente brasileiro merecem mais e o câncer merece ser estudado e tratado de frente.

FERNANDO COTAIT MALUF, 44, é chefe da oncologia clínica do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes do hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo
PHILLIP SCHEINBERG, 44, onco-hematologista do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes

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