Folha de S. Paulo


Gustavo Badaró

Presidente reeleito pode sofrer impeachment por ato realizado em mandato anterior? Sim

PODER E RESPONSABILIDADE

A presidente Dilma Rousseff terá suas contas do ano passado julgadas, depois de ganhar alguns dias de respiro, pelo TCU (Tribunal de Contas da União). A possibilidade de ela sofrer um processo de impeachment torna-se viva se as contas de 2014 foram rejeitadas.

Antes, porém, será preciso definir um pressuposto legal: é cabível ou não processo de impedimento do presidente da República reeleito, por atos praticados no exercício da função no mandato anterior?
A Constituição Federal e a lei nº 1.079/50 não preveem expressamente tal possibilidade, mas também não trazem explícita vedação.

A Constituição, ao tratar da responsabilidade do presidente da República, é silente. Apenas o parágrafo 4º do artigo 86 estabelece que "o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções".

Ou seja, um presidente não pode ser responsabilizado, por exemplo, por um escândalo sexual. Mas não está se exigindo, por outro lado, que a responsabilização se dê por "ato praticado no exercício do próprio mandato". Se o fizesse, vedaria o impeachment por ato funcional do mandato anterior.

A lei nº 1.079/50, no artigo 15, ao tratar do processo e julgamento do presidente da República, prevê que "a denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo".

Então, se o presidente foi reeleito, e ainda não deixou o cargo no segundo mandato, não me parece haver um óbice para o processo de impedimento, mesmo que tenha sido por ato praticado no exercício da função no primeiro mandato. A lei não veda tal possibilidade.

Não se pode ignorar, porém, que a Constituição, em sua redação original, e a lei nº 1.079/50 não foram elaboradas para uma sistemática eleitoral que admitisse a reeleição do presidente da República. Tal possibilidade só ocorreu com a Emenda Constitucional nº 16, de 1997.

Nos sistemas que admitem a recondução, o impeachment por ato anterior é perfeitamente viável e necessário. Deve ser admitido o processo de impedimento por crime de responsabilidade cometido no exercício da função, por ato do mandato anterior, desde que o presidente seja reeleito e reinvestido na Cargo.

Como explica Paulo Brossard em seu livro "O Impeachment", de 1965, "o fim do processo de responsabilidade é afastar do governo ou do tribunal um elemento mau; não se instaura contra governo renunciante, porém atinge o reconduzido".

A lógica do processo de impeachment é que não há poder do presidente sem respectiva responsabilidade pelo exercício do mandato.

Sendo possível a reeleição, com o pleito ocorrendo três meses antes do término do mandato, a impossibilidade de impeachment por ato do primeiro mandato significaria na prática que haveria um "bill de indenidade" para os atos nos momentos derradeiros, mas decisivos do mandato, pois não haveria tempo para um processo de impedimento.

Se perdesse a reeleição, com o término do mandato, deixaria o cargo e perderia sentido o impeachment. Se fosse reeleito, o ato maléfico praticado no mandato anterior não seria passível de responsabilização.

O político violador da Constituição se reelegeria e não poderia ser impedido de continuar no cargo por infrações recentes, mas do mandato anterior. Seria a irresponsabilidade temporária, no período que mais se necessita de responsabilidade.

Poder sem responsabilidade é incompatível com Estado de Direito, mesmo para governante que o recebeu eleito pelo povo. Como lembra Raul Pilla, em "Presidencialismo, Parlamentarismo e Democracia", "governo irresponsável, embora originário de eleição popular, pode ser tudo, menos governo democrático".

GUSTAVO BADARÓ, 43, é professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP, é sócio do escritório Badaró Advogados

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