Folha de S. Paulo


Roberto Soares Garcia

O Estado deveria incentivar programas de delação premiada? Não

ISCARIOTES E SILVÉRIOS

Em 1º de julho de 2012, sustentei em artigo nesta seção da Folha a inconveniência da adoção da delação premiada como instrumento de política criminal. Sempre me pareceu absurdo admitir como virtuosa a parceria entre Estado e criminoso, formalizada com o objetivo de facilitar a investigação pela deduragem, em troca de perdão ou diminuição de pena, em vez de se aprimorarem as técnicas de investigação.

Eventual punição de criminoso dedurado não apagaria, pensava e penso, o mal produzido pelo mau exemplo dado pelo Estado ao abraçar o criminoso interesseiro, pois num Estado democrático os fins não justificam os meios, mas estes qualificam aqueles.

A lei nº 12.850/2013 tratou do combate a organizações criminosas, regulamentando a delação. Interessa notar que a lei chama de colaboração o que o senso comum tem por traição, com o fito de perfumar conduta que, desde crianças, sabemos não prestar.

Um arrependido que confesse merece acolhida. Quem aponta o dedo para diminuir sua responsabilidade merece repulsa. Mudar o nome da estrovenga não altera sua natureza. O hoje dito colaborador nada mais é que o delator de ontem, feito do mesmo material que Iscariotes e Silvérios. Os delatados podem ter praticado crimes, mas a vileza do ato delatório não se desfigura só porque atinge quem não se senta à direita do pai.

Desfaz-se, pois, sofisma comumente invocado durante o debate: ao pregar a inadmissibilidade de prêmio à delação, não se defende ética mantida entre comparsas, mas se opõe à premiação de ato que é patife em si. E patifaria não pode servir a processo penal que, numa sociedade civilizada, precisa ser sempre virtuoso.

A delação passa de conduta repulsiva a elemento central de investigações, como se só saíssem verdades da boca do dedo-duro. Será que delator diz sempre tudo sobre todos os participantes do malfeito? Nunca mente para prejudicar desafeto ou omite para salvar parceiro, indicando caminhos tortuosos que desviem investigações de seu objetivo?

E se a delação se dá sob coação, por estar preso ou ameaçado de o ser? Mesmo que o delator fosse um poço de virtudes –e não o é, senão não teria participação em fatos criminosos para contar–, convém às autoridades deixarem-se guiar por ator controverso e interessado? Melhor fugir da colaboração premiada como instrumento investigatório.

Premiar malfeitor por informações que são indignas de confiança por origem maculada constitui a menos importante das razões para desestimular a delação premiada. Pior é o mau contágio que a delação premiada proporciona.

Quem olha de longe, vê autoridade de mãos dadas com criminosos, o que, convenhamos, é constrangedor. Quem vê de perto, percebe uma cada vez menos sutil mudança no proceder dos agentes públicos, que abandonam a excelência para se renderem a desvios inadmissíveis.

Vale tudo em busca de novos delatores: vazamentos de elementos de autos sigilosos são cada vez mais frequentes, em busca de intimidar quem se presume ter agido mal, mas ainda não foi descoberto, e o Ministério Público já não cora em admitir que prisões cautelares são utilizadas para induzir novas delações.

Quem garante que, nessa toada, o próximo passo não será a adoção de "afogamentos controlados" como técnica de interrogação, em busca de deduragem a premiar?

Enfim, são tantas as chagas causadas pela delação, que não vale impor à cidadania o ônus de ver premiado quem mereceria justiça.

Paremos de bater palmas enquanto agentes públicos e colaboradores dançam aloucados o minueto da perfídia.

ROBERTO SOARES GARCIA, 44, é advogado criminal. Foi vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD

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