Folha de S. Paulo


Ana Paula Martinez

O Estado deveria incentivar programas de delação premiada? Sim

RESISTÊNCIA CULTURAL

A delação premiada recebe críticas por incentivar a traição, o que traria implicações morais. O legado cultural de rejeição à delação reforça essa posição. Judas traiu Jesus, Brutus traiu César, e ambos se encontram no último dos círculos do Inferno de Dante, onde o próprio Satã aplica as penas eternas.

Estados totalitários e autocráticos estimularam a delação como forma de controle social, levando aos horrores do nazismo e do fascismo. No Brasil, as histórias vão desde a delação de Joaquim Silvério dos Reis até episódios traumáticos da ditadura militar. O delator é estigmatizado, referido como "X-9" (pavilhão do extinto Carandiru onde ficavam delatores e estupradores), dedo-duro e alcaguete.

A questão, porém, é menos trivial do que parece. Do ponto de vista moral, deveria o Estado preservar uma suposta "coesão social" ao conferir valor negativo a qualquer delação? Ou deveria evitar que vítimas inocentes sofram as consequências do crime, ainda que se valendo de delação?

O embate moral se coloca entre uma ética de princípios, por vezes vagos, e uma consequencialista. Na linha do pregado pelo filósofo John Stuart Mill, o critério moral para avaliar uma ação deveria residir nas consequências que esta tem sobre o bem-estar social. E, do ponto de vista moral, os críticos do programa têm de demonstrar que banir esse instrumento traria, em concreto, consequências positivas.

Aqueles que atribuem valor ético negativo à delação pretendem equiparar pactos feitos no campo da licitude com aqueles feitos à margem da lei. É como sustentar que o assassino profissional tem o dever moral de matar a vítima já que recebeu pagamento para tanto.

Não se pode esperar que o direito dê valor positivo à lealdade desse tipo. No caso do exemplo, o direito não o faz ao considerar nulos contratos com objetos ilícitos. Seria, então, nosso direito civil imoral por não estimular as pessoas a manterem sua palavra?

Do ponto de vista prático, associações criminosas são naturalmente instáveis. Quem se entrega ao mundo do crime não pode esperar de seus comparsas a mesma confiança que embasa relações lícitas. Programas de delação se aproveitam exatamente dessa instabilidade para pôr fim à conduta que, por definição, ataca valores constitucionalmente protegidos e socialmente desejados.

Em 2002, a revista americana "Time" escolheu como "personalidades do ano" as delatoras das fraudes da Enron e Worldcom, até hoje dois dos maiores escândalos corporativos globais. França e Japão são também países que enfrentaram com sucesso o dilema cultural que o Brasil encara. O famoso cartel internacional das vitaminas foi delatado por uma empresa francesa, em 1998. No Japão, país com forte cultura de cooperação empresarial, mais de 500 investigações foram iniciadas com base em delação.

Apesar de a percepção pública brasileira não ter chegado a esse ponto –isso dependerá também do uso consciente do instituto pelas autoridades e de campanhas de conscientização– fato é que, aos poucos, a resistência parece se reduzir. A experiência do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que firmou, desde 2003, mais de 50 acordos de leniência, pode servir de modelo.

Não cometer crimes é o que a ética exige de nós. Mas, uma vez que o crime foi cometido, assumir os erros, colaborar com as investigações e se dispor a reparar os danos causados não pode ser tido como conduta indesejada. Eticamente, isso deveria ser preferível à manutenção do "código de silêncio" que viabiliza as organizações criminosas.

ANA PAULA MARTINEZ, 34, advogada, é doutora em direito penal pela USP e professora responsável pelo curso de pós-graduação em direito econômico regulatório da FGV Rio

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