Folha de S. Paulo


Paulo Seidl

Festivais de gastronomia valorizam cozinhas regionais

De uma das máximas que cunhou o político francês amante da boa mesa Brillat-Savarin, 'Diga-me o que comes e eu te direi quem és', corrompe-se o final transformando-o em 'diga-me o que comes e eu te direi de onde vens. É com esse espírito que chefs de cozinha brasileiros, soldadinhos de chumbo de Alex Atala espalhados pelo país, e neobrasilianistas como Laurent Suaudeau e Claude Troisgros, vem defendendo com unhas e dentes os nossos produtos tão tupiniquins.

Fala-se aqui não só de gueroba, aviú, pinhão ou farinhas de mandioca artesanais, mas também de preparos como mogicas, carurus, vatapás e cuxás. Para aqueles que desconhecem um ou outro desses exemplos, fica o recado: a gastronomia regional brasileira junto com seus riquíssimos insumos está decolando.

E um combustível inegável para essa decolagem tem sido os festivais de gastronomia, institucionalizados do Oiapoque ao Chuí. Em um crescendo de popularidade, esses cultos à comida chegaram para ficar e marcam presença nas cidades, ruas e restaurantes do Brasil.

Não, não precisa servir comida brasileira para botar um feijão de corda no prato. Para isso inventaram o descolado termo fusion, que libera a audácia criativa dos chefs para que criem um risoto de pupunha, um praliné de baru ou um bavarois de cupuaçu. Mais ingredientes novos? Está na hora de começar a se interessar mais pelo assunto.

O brasileiro comum não explora a gastronomia regional brasileira. Aliás, nem sequer conhece as gastronomias regionais de outros países. Paulistanos desconhecem que as cantinas de sua cidade são, em sua maioria, napolitanas e não italianas. Cariocas pedem chop suey no delivery, mas nunca ouviram falar do dim sum, famoso pastelzinho da região de Guangdong, no sul da China. Até aí, isso pode parecer um problema da globalização, mas o alarme toca se você tirar zero no teste intitulado: 'Mencione 5 pratos típicos de sua região'.

Para propulsionar os regionalismos, vale tudo, da pesquisa histórica do que comiam nossos antepassados às visitas a produtores enfurnados na caatinga ou numa praia distante. Achou um livro de receitas da vovó? Está valendo. O importante é não deixar morrer a magnífica herança cultural que é a gastronomia regional. Se o mineiro torce alucinadamente pelo Cruzeiro ou o Atlético, se o gaúcho se gaba dos feitos futebolísticos colorados ou gremistas, cadê o endeusamento ao pão de queijo e ao arroz de carreteiro?

Recentemente o Festival Ver o Peso da Cozinha Paraense reuniu em Belém cozinheiros famosos do Brasil e do mundo para mais uma vez dar corda no trabalho iniciado pelo falecido chef Paulo Martins –orgulhar-se do que é nosso. Com o tema 'Marajó', os restaurantes nortistas prepararam filés de filhote, carne de Búfulo e outras delícias regionais da Ilha, regadas a tucupi e açaí. Até poucos anos atrás, o paraense que comia o fruto dessa palmeira, lavava a boca para que não ficasse roxa e revelasse que estava comendo. Hoje, mostra os dentes com orgulho do que é seu.

Entretanto, no outro lado do país, enquanto os paraenses salvaguardavam sua cultura, brasilienses esperavam mais de duas horas na fila de uma recém-inaugurada franquia americana de rosquinhas sem graça para lambuzarem os dedos nos recheios doces e artificiais de morango e framboesa no melhor estilo made in USA. Mais uma vez cabe a pergunta: Cadê o orgulho dos pratos do cerrado brasileiro?

Mas infelizmente nem todos os festivais promovem o regionalismo. Muitos deles são motivados pelo lucro e novidades efêmeras que no ano seguinte caem no esquecimento, ignorando a cultura local. Os festivais gastronômicos têm uma responsabilidade cultural para com a sua região. O resgate da nossa gastronomia regional deve ser feito com orgulho de uma nação que tem do que se orgulhar, mas ainda não sabe disso.

Não há nada contra comer hambúrguer ou pizza. Seria uma hipocrisia inócua tentar banir as casas de fast food como alguns políticos tentaram banir na marra os estrangeirismos do dicionário da língua portuguesa. O problema aparece quando deixamos de comer nossas iguarias para substituí-las por porcarias enlatadas.

Comer é um ato social, muito mais do que fisiológico. Somos o que comemos e o que comemos nos distingue do que são nossos vizinhos.

PAULO SEIDL é consultor de gastronomia e professor de cozinhas internacionais

*

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Endereço da página:

Links no texto: