Folha de S. Paulo


Editorial: Iguaria polêmica

Fosse na França, talvez houvesse algum sentido em ocupar o tempo do Poder Legislativo com debates a respeito da produção e da comercialização do foie gras. Na cidade de São Paulo, contudo, a aprovação de um projeto de lei com vistas a proibir a venda da polêmica iguaria não passa de uma excentricidade da Câmara Municipal.

Não por não existir aí uma discussão legítima sobre o sofrimento animal; ocorre que os vereadores simplesmente não têm competência constitucional para aprovar esse tipo de restrição –e ao prefeito Fernando Haddad (PT) bastará esse motivo para vetar o dispositivo.

Na arquitetura federativa do Brasil, não cabe aos edis banir mercadorias que são legais no país. Mesmo que apenas quisessem disciplinar a produção do pitéu nos limites do município, a iniciativa teria alcance quase nulo, já que São Paulo não apresenta grandes porções de zona rural nem se notabiliza por sua atividade agrícola –e menos ainda no setor de foie gras.

Daí não decorre que militantes dos direitos dos animais devam resignar-se e abandonar patos e gansos à própria sorte. Existem outras formas de atuação política que não passam pela criação de leis, normas e regulamentos.

Pode-se assumir que o processo consagrado de produção do foie gras (significa "fígado gordo" em francês) gera sofrimento desnecessário às aves. Em sua última quinzena de vida, elas são submetidas a um regime de alimentação forçada por meio de tubos inseridos várias vezes por dia em seus esôfagos.

É compreensível a repulsa provocada pela prática de enfiar nutrientes goela abaixo de patos e gansos a fim de que seus fígados desenvolvam uma esteatose capaz de torná-los mais tenros.

Os grupos de ação deveriam aproveitar essa indignação para incentivar consumidores a exigir melhor tratamento para as aves. Movimentos do gênero já eclodiram em outras partes do mundo.

São consideráveis as chances de sucesso desse tipo de campanha. Afinal, a alimentação forçada não é absolutamente essencial à produção da iguaria. Há muito tempo a humanidade sabe que patos e gansos passam por um processo de engorda voluntária nos períodos pré-migratórios.

Trata-se, portanto, de buscar maneiras mais aceitáveis de conseguir uma esteatose, obtendo um "foie gras ético". Militantes mais engajados ainda manterão sua crítica de fundo quanto ao sacrifício de animais para satisfazer os humanos, mas, até onde a vista alcança, o mundo ainda não está pronto para o vegetarianismo universal.


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