Folha de S. Paulo


Editorial: Feminicídio?

A denominação já sugere haver algo de polêmico e de extravagante na proposta. O termo ganha notoriedade, contudo, após a aprovação, pelo Senado e agora pela Câmara, de mudança legislativa tornando mais severas as penas para o assassinato de mulheres, quando motivado por razões de gênero.

Cabe analisar em detalhe a proposta, que depende apenas da sanção da presidente Dilma Rousseff (PT) para alterar o Código Penal.

O artigo 121 desse diploma determina pena de seis a 20 anos de reclusão para quem matar uma pessoa. Em seu parágrafo segundo, descreve cinco circunstâncias especiais nas quais a sanção vai de 12 a 30 anos de reclusão.

A ideia do feminicídio implica introduzir uma sexta hipótese: a pena será aumentada quando houver, no assassinato, "razões de gênero" contra a mulher. Entende-se por isso a presença de uma situação de "violência doméstica e familiar" ou de "menosprezo ou discriminação à condição" feminina.

É indiscutível que o assassinato de uma mulher pode conter componentes especiais de covardia e brutalidade; por certo o ciúme paranoico ou a fúria imotivada tornam odioso o ato homicida do marido contra a companheira.

Tais circunstâncias já estão, todavia, contempladas pela legislação vigente. Motivo fútil, dificuldade de defesa, crueldade –não faltam mecanismos para punir com severidade o "feminicida".

O conteúdo extravagante da inovação saltaria aos olhos se, por exemplo, o Congresso estendesse seu populismo para criar também as figuras do "homocídio", do "indigenticídio" ou do "silvicolicídio". Não são poucos os grupos vulneráveis numa sociedade como a brasileira –e se há um estrato especialmente exposto à violência é o de jovens pretos e pardos.

Numa perspectiva inversa, e por certo absurda, ninguém haveria de dizer que o homicídio de pessoas em particular situação de força deva ser apenado com menos rigor.

Também soam absurdos os desdobramentos teóricos da medida. Fixar pena maior para o assassinato de uma mulher significa considerá-lo mais grave que o de um homem. O sexo feminino, então, seria mais frágil? Ou a vida masculina teria um valor menor?

São paradoxos implausíveis, sem dúvida. Inerentes, contudo, a toda iniciativa legal em que se substitui o princípio da universalidade pela política das diferenças, feita de atenções a especificidades sociais que se multiplicam ao infinito.

Ainda que se tente acompanhá-las, a minúcia crescente da lei não é garantia de que, na prática, a justiça seja feita. Ao contrário, o endurecimento penal ao sabor das pressões quase nunca ajuda a prevenir o crime, mas sempre acrescenta distorções ao ordenamento jurídico.


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