Folha de S. Paulo


Rui Amaral: Grafite, Arcos do Jânio e Hugo Chávez

Anos atrás, em um dos meus aniversários, ganhei da minha mulher e dos meus dois filhos uma camisa de presente. Posso assegurar que era de boa qualidade, mas era muito feia. O que fazer em uma hora destas? Agradeci, obviamente, e recebi aquele beijo e aquele abraço dos meus filhos, que é o que mais vale nesta vida.

Dias atrás, a cidade de São Paulo recebeu um presente: a pintura de um mural de mais de 15 mil m2, que percorre toda a avenida 23 de Maio. É uma das maiores intervenções artística da América Latina.

Eu e outros 13 artistas curadores –representativos da arte de rua de estilos e regiões diferentes da cidade– fomos convidados pela Secretaria de Cultura para organizar este trabalho. Convidamos mais artistas, somando um total de 450.

Para inaugurar os murais, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo sugeriu pintarmos os Arcos do Jânio, localizados bem no início da avenida, um espaço especial onde criamos um diálogo entre o antigo e o contemporâneo.

Foi um dia inesquecível. Fizemos uma bicicletada em uma manhã linda de domingo. Saímos do Museu de Arte Contemporânea, no Ibirapuera, e fomos até os Arcos do Jânio, onde havia uma festa aberta ao público com chope e churrasco. Há anos trabalho para que São Paulo fizesse essa confraternização com vários artistas da cidade, juntando grafite, música, bicicletas, skate, futebol, samba, rap, rock e reggae.

É isso que estamos chamando de "Grapixo", um movimento cultural de articulação de arte de rua, com inclusão social e educação. O "Grapixo" foi um dos destaques nesse evento, fortalecendo a possibilidade de construção de uma política pública voltada às artes urbanas.

Essa construção de valor histórico, com mais de um século de existência, já teve uma intervenção grande quando do seu restauro durante a gestão de Jânio Quadros (1986-1989). No vão dos arcos foi construído um novo muro de arrimo. Os arcos foram preservados.

O novo muro de 1987, com revestimento de cimento, destes que vemos aos montes por aí, foi pintado com a cor do concreto, cinza. Na gestão anterior à atual, os arcos foram pintados na cor de tijolo.

O que fizemos foi só trocar a cor cinza do muro por um mural artístico, com aprovação do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo). Vi na "Primeira Página" desta Folha uma foto cuja legenda questionava se um das pinturas era o rosto do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. Como curador do projeto, posso garantir que a resposta é negativa.

Na frente dos arcos tem uma praça cercada com grades e a ideia foi retirá-las para que a população possa circular e apreciar o mais novo ponto turístico da cidade, agora mais valorizado, pois já existem vários passeios turísticos especializados em arte urbana em São Paulo.

Acredito que ações como essas, replicadas em outros pontos da cidade, principalmente nas periferias e nas regiões menos assistidas, possam contribuir de uma forma positiva para a cultura e a qualidade de vida em nossa cidade. Assim poderemos construir uma cidade mais humana, democrática e divertida.

Sobre a camisa que ganhei de presente, usei-a, no máximo, duas vezes, mas tenho guardada até hoje com o maior carinho, pois ela me traz uma lembrança de que o mais importante é a atitude, o amor e o respeito pelo próximo, independentemente da cor, sexo ou religião.

RUI AMARAL, 53, artista plástico, é curador do projeto da Prefeitura de São Paulo para a pintura de murais na avenida 23 de Maio

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