Folha de S. Paulo


Claudio Weber Abramo: Brevíssimo vocabulário do bem

"Cidadania". Juntamente com "ética" (ver), compõe o currículo nuclear da escola do bem. Quem fala em cidadania não raro revela ignorar que se trata de assunto prático –cidadania é exercida por quem defende direitos específicos, o que por sua vez depende da presença de motivos concretos para tanto (ter água em casa, contar com um posto de saúde no bairro etc.). Não se aprende a exercer cidadania no abstrato.

"Cultura da corrupção". Expressão predileta de quem não tem o que dizer a respeito das causas da corrupção e de como combatê-la. Implica que seríamos todos corruptos, o que transforma a vítima em culpado e, de quebra, absolve empresários rapinantes, funcionários públicos ladrões e políticos meliantes.

"Democracia direta". Contradição em termos. Postula que o exercício da política deve dar-se a despeito da formulação de projetos de organização sócio-econômica através do agrupamento de interesses semelhantes (a saber, política).

"Educação". Filhote da "cultura da corrupção", é sinônimo de catecismo doutrinário. Não se ocupa de assuntos irrelevantes como matemática e português.

"Educação Moral e Cívica". Arcaísmo originário do regime militar. O mesmo que "educação para a cidadania".

"Ética". Expressão guarda-chuva para qualquer situação que envolva a moralidade e pedra fundamental da Educação Moral e Cívica do bem. Costuma ser usada em lugar de "moral", pois dizer que "falta ética a Fulano" soa menos ofensivo do que dizer "Fulano é imoral".

Quanto à noção de que seria possível ensinar moralidade em sala de aula, qualquer estudante de filosofia poderia informar que moral se aprende vivendo. Por outro lado, caso se pretenda ensinar ética em sentido estrito, isso obrigará alunos do curso primário a estudarem Kant, Spinoza e companhia.

"Impunidade". Nunca usada no sentido estrito (não aplicação de uma punição definida pela Justiça, coisa rara no Brasil), se refere a situações em que alguém sobre cuja culpabilidade se tem alguma convicção não está sendo processado, ou ainda não foi condenado na Justiça. Costuma ser atribuída a eflúvios vagos de natureza "ética", sem menção à lentidão do Judiciário brasileiro e à sua principal causa –um sistema recursal que garante a réus endinheirados pagar advogados caros para protelar a conclusão de processos.

Como réus pobres não podem pagar os tais advogados, a lentidão para os ricos é, assim, manifestação da desigualdade de classes –algo que se tornou anátema mencionar no Brasil, sendo muito mais seguro atribui-la a fatores subjetivos inatingíveis. Com isso não só se evita antagonizar interesses que é melhor deixar quietos como também se garante que o problema permanecerá intocado.

"Mundo real". Ente abstrato um tanto desconhecido.

"Transparência". Muito empregada como sinônimo de "ética", mesmo em situações que vêm à luz porque houve transparência propriamente dita (ou seja, disponibilidade de informação). "Falta transparência?", pergunta o repórter que consulta dados publicados pela Câmara dos Deputados dando conta do uso de verba indenizatória por parlamentares. Não falta quem responda que sim.

"Verdade". Qualquer coisa, desde que soe bem.

CLAUDIO WEBER ABRAMO é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção

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