Folha de S. Paulo


Marcos Lisboa e Samuel Pessôa: O custo da ambiguidade

O Brasil passou por vários momentos difíceis nas últimas décadas. Em poucos casos, porém, tivemos gestores públicos que enfrentassem com transparência as dificuldades e a necessidade de medidas duras e responsáveis. Menos ainda, gestores que reconhecessem os seus próprios equívocos.

Na imensa maioria dos casos, o enfrentamento dos problemas foi postergado até que uma grave crise tornou inevitável a adoção das medidas necessárias.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enfrentou a hiperinflação dos anos 1990 e a continuação da difícil agenda das privatizações iniciada no governo Collor. Depois da estabilização, no entanto, houve retrocesso e a progressiva piora das contas públicas. Só após a crise de 1999, o governo adotou medidas de correção.

Ao menos, nesse caso, as medidas foram profundas e permitiram um novo regime fiscal que foi essencial para a estabilidade econômica na década seguinte.

Em 2001, o governo enfrentou uma nova grave crise, o racionamento de energia, decorrente da regulação equivocada do setor elétrico agravada por um período de seca.

A resposta do governo à crise foi exemplar. Os erros cometidos foram assumidos e os problemas enfrentados com transparência, gestão competente e apoio surpreendente da população. O racionamento à época não implicou cortes relevantes no fornecimento de energia. Não foi fácil, mas foi necessário e evitou uma crise com consequências ainda maiores.

O populismo prefere a saída em que a responsabilidade é atribuída a um fator externo ou a interesses ocultos, optando-se pelo discurso adjetivado em vez de argumentos com base em fatos e dados.

Melhor propor que impostos sobre aviões e helicópteros resolvem a crise da USP do que enfrentar as dificuldades reais. Melhor defender que o ajuste fiscal seja feito com um imposto sobre grandes fortunas sem ao menos verificar a capacidade de arrecadação deste imposto, seus impactos sobre a economia ou a sua relevância em outros países.

Nos últimos anos, prometeu-se que não haveria restrições à oferta de água nem de energia. Afirmou-se que a expansão dos gastos públicos permitiria enfrentar as dificuldades da economia e preservar os ganhos sociais.

Faltou combinar com a realidade. O Brasil cresceu menos do que os demais emergentes e menos do que o restante da América Latina, a desigualdade de renda estagnou desde 2011 e prenuncia-se longo período de baixo crescimento e piora progressiva do mercado de trabalho. Afirmou-se que a expansão era para evitar as consequências do ajuste. O resultado é o grave quadro da economia e a necessidade de um ajuste ainda mais severo.

A falta de compromisso com os fatos e os desafios a serem enfrentados, além da pouca transparência e reconhecimento do fracasso do experimentalismo dos últimos anos, podem resultar em um ajuste fiscal incompleto e ineficiente que não supere as graves dificuldades existentes na economia do país. Isso significaria recessão em 2015 sem o benefício da retomada do crescimento nos próximos anos.

Agravando o quadro, a gestão política não parece melhor do que a econômica. Em ambos os casos, o discurso descolado da realidade resulta na incerteza sobre a realização do ajuste necessário, que requer medidas legais adicionais às já propostas pela equipe econômica.

Fernando Henrique Cardoso enfrentou a crise de energia de 2001 com transparência e responsabilidade pública, reconhecendo erros, a mudança de rumo e liderando o duro ajuste necessário.

O primeiro governo Lula enfrentou difícil agenda de ajustes e reformas contrária à politica econômica e social historicamente defendida pelo PT. Foi público o debate entre os diversos grupos do governo arbitrados com pragmatismo pelo presidente. Eram outros tempos.

MARCOS LISBOA, doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia (EUA), é vice-presidente do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa
SAMUEL PESSÔA, mestre em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. É colunista da Folha

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