Folha de S. Paulo


Editorial: César, o papa e o califa

Pode-se encontrar qualquer tipo de disparate e opinião bizarra nas redes sociais, e o mais sensato, em geral, é não levar nada disso a sério. Mas a proporção da tolice se altera, sem dúvida, dependendo da importância e da representatividade da pessoa que a proferiu.

Causa estranheza, assim, a manifestação do secretário da Justiça do Estado de São Paulo, Aloisio de Toledo César, sobre os atentados ao jornal francês "Charlie Hebdo".

No Facebook, o desembargador aposentado expressa sua "mais profunda indignação ao (sic) mau uso da liberdade de expressão dos cartunistas franceses". Estamos apenas na abertura de seu texto, e já não é pouca coisa.

O mundo assistiu, estarrecido, ao vídeo em que dois jihadistas saem de um carro numa rua de Paris. Haviam acabado de chacinar 11 pessoas no semanário satírico. Um segurança está no caminho dos terroristas. É baleado; cai no chão. Um dos assassinos se aproxima e mata-o à queima-roupa.

E como reage o novo secretário da Justiça de Geraldo Alckmin (PSDB)? Ele se indigna. Profundamente. Não com o ato bárbaro dos extremistas, sobre o qual silenciou, mas com o "mau uso da liberdade de expressão". Condena os cartunistas, não os assassinos.

Na ótica de Toledo César, os humoristas do "Charlie Hebdo" –aqueles que sobreviveram, bem entendido, e que lançaram nova edição do jornal com charges sobre a tragédia– "já provocaram mortes e insistem em dar chicotadas nos muçulmanos, desafiando-os".

É o mundo de ponta-cabeça, numa fraseologia em que vítimas se transformam em terroristas, e em que cartunistas viram executores da lei islâmica –que estabelece, como ocorre agora na Arábia Saudita, o açoitamento de infiéis.

Admita-se que nem todas as pessoas estão dispostas a endossar o lema "Je suis Charlie", em solidariedade às vítimas do extremismo. Nem todos, de fato, consideram justa ou construtiva a iniciativa de pilheriar com religiões.

Mas discordar do "Charlie Hebdo" não se confunde com uma absoluta inversão dos valores da liberdade e da tolerância, além do senso de justiça. Voltando-se a indignação contra as vítimas, abrem-se as portas da solidariedade com os assassinos. "Eu sou Maomé", disse Toledo César; poderá dizer "Eu sou Chérif Kouachi" também?

O papa Francisco deu alguma legitimidade institucional a essa atitude, observando que, se um assessor insultasse a sua mãe, receberia um murro em resposta. Conclua-se que, se um cartunista desenhar Maomé, é normal que seja punido por isso. Eis um caso, ao mesmo tempo trágico e irônico, em que todos –César, o papa e o califa– estão de acordo.


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