A difamação é um subterfúgio comum àqueles que buscam minar a credibilidade de certo pensamento sem se dar ao trabalho de rebatê-lo com argumentos. Lamentavelmente, foi o uso desse recurso que acabou por contaminar as palavras de Demétrio Magnoli publicadas nesta Folha no artigo "Raqqa, aqui" (10/1, "Poder").
Esse colunista selecionou sete palavras de uma entrevista de 35 minutos que concedi ao vivo, logo após o atentado ao jornal satírico "Charlie Hebdo", amputando-as do seu contexto, a fim de atribuir à apresentação que fiz de todo um contexto histórico a manifestação de uma infundada e absurda "adesão à lógica jihadista".
Atacou ainda, com o mesmo destempero, inominados departamentos da academia, chamando-os de "lata de lixo do pensamento".
O massacre da semana passada em Paris –assim como tantos outros, tributários de deturpadas doutrinas políticas ou religiosas– é prova suficiente de que o uso da força destinado a cercear a liberdade de manifestação do pensamento é inadmissível, seja qual for o contexto ou pretexto. Nada pode relativizar esse princípio.
A liberdade de expressão não veda a crítica a qualquer pensamento, nem impede que sejam feitas ressalvas quanto à conveniência ou oportunidade de determinada manifestação prejudicial à convivência entre os que pensam diferente, por mais que manifestar continue sendo um direito de seu autor.
Objeções dessa ordem são ainda mais justificáveis em contextos nos quais grupos minoritários são inferiorizados e marginalizados por uma elaboração teórico-ideológica, também chamada de "orientalista", que acumula um longo histórico, associado a mais de 150 anos de colonialismo europeu.
Para conciliar as liberdades de manifestação do pensamento e religiosa –e para combater o próprio terrorismo–, parece-me essencial que os muçulmanos, pelos seus próprios meios de gestão da religião, impeçam que grupos diminutos, e nada representativos, usem-na como fundamento para cometer atrocidades.
O exercício da crítica e a livre manifestação do pensamento estão presentes nas origens do islã, seja entre filósofos, seja na prática do "ijtihad" –o esforço racional independente na interpretação de textos sagrados à luz das necessidades da época.
Oportuno lembrar também que não há qualquer pena para a blasfêmia no Corão, indicando-se apenas a necessidade de afastamento (não se sentar à mesa).
Não só por esses precedentes, penso que os muçulmanos são os mais aptos –se não os únicos– a eliminar o fundamentalismo gestado no seio de sua cultura, ou, ao menos, a impedir que alguns poucos membros fomentem o terrorismo em nome da religião praticada por 1,5 bilhão de pessoas.
A opção pela convivência e a crença de que o combate ao terrorismo depende de ações conduzidas internamente por lideranças muçulmanas vem sendo explícita ou implicitamente adotadas por vários intelectuais e personalidades nos últimos dias. Não decorre daí, contudo, qualquer relativização no julgamento do recente atentado.
É por essas razões que repudio veementemente a atitude de Demétrio Magnoli. Espero que esse senhor evolua para um ser capaz de compreender que existem, sim, alternativas em prol de uma convivência melhor –alternativas essas muito mais propensas a exaurir o terreno do fundamentalismo do que a destilar o ódio, como esse que escorre da sua pena.
ARLENE E. CLEMESHA, 42, professora de história árabe da USP, é autora de "Palestina 48-08 - 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação" (DEFC), de "Marxismo e Judaísmo" (Boitempo Editorial/Xamã), entre outros livros
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