Folha de S. Paulo


Lei Rouanet deve financiar gastronomia? Não

CARLOS ALBERTO DÓRIA: AFAGO NÃO É INVESTIMENTO

A compreensão do papel da alimentação na vida moderna mudou partir de 1990 e a "gastronomia" deixou de ser expressão de "frescura" para se tornar o apreço pelos aspectos qualitativos da alimentação.

Daí o truísmo –"Gastronomia é Cultura", projeto lançado pelo instituto Atá, do chef Alex Atala– chamando a atenção para a necessidade de investir numa alimentação melhor. Já o fato de o movimento mirar a Lei Rouanet tem mais sentido político-publicitário do que prático, visto que, do jeito que ela está, nada impede que acolha projetos com esse viés.

Com exceção da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), as intervenções públicas no mercado alimentar favorecem o agronegócio e a grande indústria.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem se notabilizado por ser impiedosa com os hábitos alimentares dos brasileiros. No Plano Nacional de Turismo 2013-2016, a palavra "gastronomia" não sequer é mencionada. No Plano Nacional de Cultura (2011), o governo que se propunha a reconhecer a atividade não o fez. O Estado, de fato, precisa rever sua postura.

Uma política pública em relação à qualidade da alimentação exige que ele faça sua lição de casa. O sistema universitário –o CNPq–, a Embrapa, os Ministérios da Cultura, do Turismo, do Desenvolvimento Agrário, precisam ter planos e metas específicos que, juntos, permitam o florescer da gastronomia.

Quanto e onde precisaríamos investir em cinco anos para provocar um salto de qualidade? Tudo começaria por um grande inventário do que o brasileiro efetivamente produz e come, em cada localidade, à semelhança do que fez a França nos anos 1990.

Mas a Lei Rouanet, contraditoriamente, tende a destroçar a ação pública. Ao entregar às empresas, a decisão de onde investir o dinheiro público no bem público parece dizer que o Estado é neutro diante dos interesses culturais.

Sob esse liberalismo, coisas que precisam ser feitas, como um anexo para a Biblioteca Nacional, não foram realizadas. Coisas que não deveriam ter sido feitas –os brasileiros ainda têm na memória o escândalo do patrocínio do Cirque du Soleil–, foram.

Além disso, o acesso "democrático" à renúncia fiscal é uma ilusão. Apenas 37% dos projetos apresentados entre 1993 e 2014 lograram financiamento no mercado. A lei, pensada também para descentralizar ações culturais, funciona como mecanismo perverso de concentração: 66% dos projetos financiados estão no Sudeste, 20% no Sul e 7% no Nordeste do país.

De um lado os grandes patrocinadores –bancos e estatais– e, do outro, os grandes tomadores de recursos –Instituto Itaú Cultural, Orquestra Sinfônica de São Paulo, Bienal, etc.– praticamente monopolizam as transações, deixando migalhas para os demais.

O Itaú, que destinou, em 2013, R$ 32 milhões ao sistema, "captou" de volta R$ 21 milhões, sendo que isso se repete ano após ano. Resta aos pequenos fazerem seus "coffee table books" (livro de mesa de centro, em inglês) e darem-se por satisfeitos. Algumas ONGs, claro, vão se viabilizar. Mas a gastronomia brasileira tem magnitude enorme, e o seu florescimento requer um Estado esclarecido e com liderança.

O grande cozinheiro espanhol, Santi Santamaria, em carta dirigida ao governador da Catalunha, escreveu em 2011: "Os que se esforçam por fazer uma cozinha de excelência necessitam, de vez em quando, um gesto simbólico de apoio". Parece ser o caso do afago que o movimento "Gastronomia é Cultura" busca na Lei Rouanet.

CARLOS ALBERTO DÓRIA, 64, sociólogo, é autor de "Formação da Culinária Brasileira" (Três Estrelas) e "Os Federais da Cultura" (Biruta), entre outros livros

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