Folha de S. Paulo


Tercio Sampaio Ferraz Junior: A anistia e o desejo de punir

Nem bem divulgado, o relatório da Comissão Nacional da Verdade já se vê submetido a controvérsias. Não sobre os eventos relatados, mas sobre omissões. São contestações de familiares de desaparecidos, que reclamam da ausência de detalhes, e de parentes de assassinados em ações de militantes, que cobram a extensão das investigações.

Também há disputa sobre a recomendação de revisão da Lei da Anistia por força da denúncia do regime militar de 1964 enquanto protagonista de um projeto de Estado que usou de tortura e de outros crimes considerados imprescritíveis.

Diante disso, não há como separar razão de emoção. A presidente Dilma, de um lado, afirmou claramente que não se deveria ver revanchismo no documento, mas não conteve as lágrimas ao recebê-lo.

O ponto de divergência está no olhar que se deve dirigir às narrativas nele contidas. Se virmos ali um propósito de justiça, é inevitável que surja um forte sentimento de repulsa. Justiça é um valor que mexe não só com os sentimentos mais íntimos do ser humano (culpa e remorso, por exemplo), como também com verdade e cognição, donde a exigência de imparcialidade de um vere-dito (aquilo que é dito verdadeiramente).

Pela narrativa de atos escabrosos –crimes imprescritíveis–, só haveria espaço para um julgamento, jamais para um perdão. Uma questão, porém, é saber se é de justiça que se trata quando se leem as narrativas que resgatam dados históricos.

Perpetuar a memória das coisas tem a ver com imparcialidade. O problema parece ser evidenciado pelo fato de que os historiadores constroem frequentemente narrativas opostas em torno dos mesmos fatos. Ora um omite o que o outro destaca e vice-versa.

A comparação, porém, só pode ser feita se admitimos tratar-se do mesmo acontecimento. Percebe-se, por isso, que exigir justiça não se esgota num relato. Clama por contraditório, discute uma extensão em igualdade a todos os que perpetraram crimes, até porque um julgamento exige mais que testemunhos: é preciso a prova dos fatos.

Ademais, muitos dos algozes morreram (que o Diabo os tenha), outros sobrevivem e buscam tratar os eventos como fatos justificáveis, alguns contestam que o comportamento guerrilheiro se assemelhasse a um ato de tortura, como se fosse possível justificar brutalidade com brutalidade.

Para ilustrar o dilema, menciono trecho extraído do romance "O Zero e o Infinito", de Arthur Koestler: "Pouco tempo atrás, nosso principal agrônomo, B., foi fuzilado com 30 de seus colaboradores por sustentar a opinião de que o adubo de nitrato é melhor que o de potassa. Como o nº 1 [Stálin] é totalmente a favor da potassa, B. e os outros 30 tiveram de ser eliminados como sabotadores. [...] Caso o nº 1 esteja certo, a história o absolverá, e a execução dos 31 homens será uma insignificância. Se estiver errado...".

Disso extraía uma consequência cínica: "A última verdade é, penultimamente, sempre uma falsidade. Aquele que no final é considerado certo terá antes parecido errado e nocivo. Mas quem será considerado certo? Isso só se saberá mais tarde".

Talvez se possa perceber que, nos casos em que uma culpa individual se estende sem fronteiras nítidas aos chefes, aos presidentes e até a toda a sociedade, a invocação da justiça não seja o caminho mais adequado.

A justiça é uma deusa guerreira, tem num braço a balança, mas sustenta no outro uma espada. Daí talvez por que não seja ela, mas a paz que deva ser levada em consideração. Não a paz da misericórdia, atributo divino que se volta ao perdão, mas a paz política no sentido humano de esquecimento, não dos próprios eventos, mas do desejo (justo) de punir atos repugnantes.

Essa paz, que se chama anistia, não se confunde com perdão nem exige perdão, mas apenas uma vontade de erguer algo sobre os escombros de muitas injustiças.

Por isso tem o sentido de um ato superior, que se pratica não por força de comparações, proporções ou ajustes, mas por um senso absoluto de pacificação. Exige esforço, controle das emoções, mesmo quando não impede a dor das lágrimas, visíveis nos olhos da presidente Dilma.

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 73, advogado, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor do livro "O Direito entre o Futuro e o Passado" (ed. Noeses)

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