Folha de S. Paulo


Miguel Srougi: Faculdade de Medicina da USP

Três alunas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) relataram terem sido violentadas em festas na instituição e sugeriram que colegas as pressionaram pela ocultação dos episódios. Uma onda de indignação compreensível assolou nossa sociedade, incapaz de aceitar que futuros médicos de mães, mulheres ou filhas pudessem se comportar de forma tão pervertida.

Para todos os decepcionados, posso assegurar, sem hesitação, que os membros da FMUSP também foram tomados pela indignação e concordam que alunos agressores devem ser eliminados da universidade, se confirmadas as acusações e a insanidade deles.

Com igual convicção, gostaria de dizer que, dominada pela emoção, nossa sociedade generalizou injustamente o seu desapontamento. A FMUSP foi difusamente demonizada pela imprensa e apontada como covil habitado por docentes que compactuam com as indecências e por alunos estupradores.

Sentimento que foi amplificado imerecidamente por alguns membros da instituição, acometidos por moralismo oportunista ou frustrações acadêmicas.

Desconcertado, sou obrigado a relembrar o papel eloquente que a FMUSP desempenhou na história da nação. Nela formaram-se ou por ela passaram os grandes personagens da medicina brasileira, reconhecidos dentro e fora de nossas fronteiras, comprometidos com o resgate da vida e alívio do sofrimento humano.

Renata Miwa
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A cada ano cerca de 6.000 alunos e profissionais qualificam-se em todas as áreas da FMUSP e, plenos de valores, conduzirão a saúde da nação nas próximas décadas. Nossos médicos e pesquisadores são hoje responsáveis por aproximadamente 13% de toda a produção científica da USP, embora a FMUSP –e o seu Hospital das Clínicas– seja apenas uma das 54 unidades de ensino e pesquisa da universidade.

Conhecimentos científicos que contribuirão para melhorar o cotidiano dos brasileiros e forjar uma nação mais digna para seus filhos.

Lembro também que docentes e alunos da Faculdade de Medicina morreram ou desapareceram, por defenderem a liberdade e os direitos humanos nos momentos mais tenebrosos da nossa história, como ocorreu nos movimentos de 1932 e 1964.

Não posso deixar de recordar que vivemos em um mundo onde a existência humana foi banalizada, assolado por cenas incessantes de guerras, assassinatos, infanticídios ou decapitações. Nesse contexto, como evitar que instituições seculares possam ser habitadas por mentes imperfeitas?

Vivemos numa nação injusta e egoísta, onde a maioria de seus jovens está açodada pelas incertezas do porvir e pela falta de modelos que possam pautar sua existência. Diante dessa realidade, também pergunto: como esperar que as novas gerações se comportem, unanimemente, de forma virtuosa e solidária?

Ainda mais. Vivemos numa sociedade em que a violência contra as mulheres espraiou-se de forma tão repugnante e, assim mesmo, não gera indignação. Segundo o Ipea, 470 mil brasileiras são estupradas a cada ano, 70% delas na infância ou adolescência.

Estatística tão insuportável quanto outra apresentada pelo projeto Mapear, da Polícia Rodoviária Federal: foram identificadas, nas rodovias brasileiras, mais de 1.900 pontos de exploração sexual de crianças, obviamente meninas, nem preciso dizer de que estrato social. Indecência que produz danos irreparáveis à existência das mulheres e à superação da miséria num país sufocado pela desigualdade.

Esses números não isentam a FMUSP de zelar pelos valores caros à dignidade humana e, reafirmo, não vacilaremos. De qualquer forma, seria restaurador para o Brasil que a indignação voltada contra a FMUSP também se estendesse para as torpezas que rondam a vida de todas as brasileiras.

Encerro explicando a ausência de adjetivos no título deste artigo. Fiz de propósito, mesmo sabendo que despertaria menos emoções. Quis realçar o papel incomparável que a FMUSP desempenha na história da nossa nação e colocar seu nome no alto das páginas nobres da Folha, lugar onde ela sempre esteve e de onde nunca merecia ter saído.

MIGUEL SROUGI, 68, é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP, pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard (EUA) e presidente do Conselho do Instituto Criança é Vida

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