Folha de S. Paulo


Lenio Streck e André Karam: Vícios privados, benefícios públicos

No artigo "A ética do crime do colarinho branco" (Folha de S. Paulo, 3/12) , membros do MPF (Ministério Público Federal) da operação Lava Jato (Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos) disseram que "alguns advogados do caso, trasvestidos de juristas" e "alguns 'doutrinadores' vêm na colaboração um recurso antiético, um incentivo do Estado à alcaguetagem". Para eles o silêncio dos acusados seria "imoral".

Claro: o silêncio não é mais um direito constitucional. Virou imoral por decreto de dois procuradores da República, que reescrevem a Constituição. Lendo o seu artigo, tem-se que o MP –ao qual um dos subscritores desta réplica pertenceu por quase 30 anos– longe está de alcançar o grau de distanciamento e imparcialidade que a função exige.

Aqui, ao que se vê, há um sentimento "tipo procurador Pastana", que, assinando parecer em nome da Instituição guardiã da cidadania, disse que a delação premiada deve ser usada para pressionar os investigados "a abrirem o bico", pois "passarinho para cantar precisa estar preso". Bingo.

Pois é essa manifestação que os dois procuradores defenderam e, a partir de falácia ad hominem, atacam os "doutrinadores" (para eles, entre aspas). Claro que jamais pensaríamos em colocar "procuradores" entre aspas.

Não somos advogados da causa. E nem temos procuração dos colegas Alberto Toron, Aury Lopes Jr., Geraldo Prado, Guilherme Batochio, Marcus Vinícius Coelho e Miguel Reale Jr. Mas temos procuração da Constituição, para a qual todo réu é inocente até prova em contrário. Aquela que proíbe prova ilícita e que veda pressão sobre acusados. Sim, o texto constitucional, que dá direito sagrado ao silêncio e que, portanto, não pode fazer com que os investigados sejam presos para "abrir o bico".

Se a delação é usada para tanto, é flagrantemente inconstitucional, por violação ao direito ao silêncio e pela vedação de responsabilidade objetiva. Por isso deve ser feita uma "Verfassungskonforme Auslegung" (do alemão interpretação constitucional) para impedir que a delação seja utilizada como forma de pressão e/ou violência psíquica. Do contrário, é moralismo. E autoritarismo.

Inútil dizer que culpados devem ser punidos. Mas não a qualquer custo. Não podemos sacrificar os direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição sob o álibi (moralista) de que se pode usar a delação como forma de pressão.

Por fim, valemo-nos de uma fábula liberal, a das abelhas, de Mandeville. Elas viviam prosperamente em sua colmeia, até que um grupo de abelhas "neovirtuosas" decidiu dar um fim aos vícios (corrupção era o menor deles!). Foram à rainha e pediram que fosse decretada a virtude. E assim se fez. Todos virtuosos. Bom? Não. Ruim.

Sem vícios, a sociedade começou a ruir. Advogados ficaram sem trabalho, procuradores não tinham quem denunciar, médicos sem pacientes, policiais ociosos. Fracasso total. As abelhas se reuniram e pediram à rainha o restabelecimento dos vícios. Moral da história? É impossível uma sociedade formada apenas por virtuosos.

Por isso, a necessidade de garantias constitucionais para os que sucumbem aos vícios. Eles fazem parte da sociedade. Hobbes já sabia disso. Aliás, nós, juristas, vivemos dos vícios. O MP também. Vícios privados, benefícios públicos, diria Mandeville. Eis a moral da história. Esperamos que a ironia seja bem entendida. E, como tal, não deve ser lida ao pé da letra.

LENIO STRECK, 59, e ANDRÉ KARAM TRINDADE, 33, são professores de direito constitucional e sócios do escritório Streck, Trindade & Rosenfield

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