Folha de S. Paulo


Isaias Raw: Anvisa, Ministério e o colonialismo farmacêutico

Em 2006, acertei um acordo com o NIH (Institutos Nacionais de Saúde) dos Estados Unidos para obtenção das cepas vacinais para os quatro sorotipos de dengue já testadas em macacos e em voluntários nos EUA para desenvolver a tecnologia de produção de uma vacina tetravalente de dengue.

Isso foi feito dentro da meta nacional de autossuficiência introduzido pelo ex-ministro da Saúde Adib Jatene (1992 e 1995-1996), com inovação e desenvolvimento tecnológico que implantei no Instituto Butantan.

Estávamos fazendo o mesmo com os sorotipos da vacina de rotavírus. Conseguimos desenvolver a vacina tríplice (difteria, tétano e coqueluche) e hepatite B entregando, entre 1985 e 2009, 300 milhões de dose ao Ministério da Saúde, cerca de 90% das vacinas desenvolvidas e produzidas no país para vacinação de neonatos, crianças e adultos, o que reduziu estas infecções. Também iniciamos o novo desenvolvimento das vacinas de influenza e raiva para uso humano.

O primeiro ensaio da vacina de rotavírus desenvolvida pelo NIH, integralmente produzida pelo Butantan, foi feita em 2006, mostrando-se segura e eficaz. Como não tínhamos recursos para construir a fábrica, a Bio-Manguinhos (unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz) decidiu envasar temporariamente a vacina monovalente da companhia farmacêutica GSK.

Depois de quase uma década e um gasto de R$ 60 milhões por ano, o Ministério da Saúde demonstrou que a vacina eficaz para três sorotipos não funcionou com dois prevalentes no Brasil.

Em 2011, levei Steven Whitehead (que desenvolveu a vacina de dengue no NIH), Anna Durbin (da John Hopkins) e Donald Francis (famoso por ter controlado o surto de Ebola no Zaire e descobrir o vírus do HIV em São Francisco) para conversarmos com Dirceu Barbano, presidente da Anvisa.

Mostramos dados que permitiam passar imediatamente para a fase dois do ensaio. Barbano concordou em liberar imediatamente o ensaio, mas "saiu de férias" sem assinar. Um ano e meio depois o ensaio tinha finalmente sido liberado, mas permitindo antes à empresa farmacêutica Sanofi fazer ensaios no Brasil.

A vacina da Sanofi deu apenas 30% de eficácia, que não permitia seu registro. Agora, em um novo ensaio, que protegeu 50- 42-74-78% para as quatro cepas, faz uma média e afirma que a vacina é eficaz e deve ser aceita para registro.

Já nossa vacina, testada nos Estados Unidos atingiu com apenas uma dose, contendo cem vezes menos antígeno do que a vacina da Sanofi, acima de 90% de eficácia para cada sorotipo.

Um estudo econômico realizado pelo Pediatric Dengue Vaccine Initiative no Instituto Butantan calculou que o custo de produção do antígeno da vacina pronta para ser envazada custaria menos de US$ 0,20. A da Sanofi gastando 300 vezes mais antígeno, não custaria menos do que US$ 60,00 por pessoa.

Solapando o esforço de inovação e autossuficiência, a Anvisa em 2012 mandou destruir 15 milhões da vacinas de influenza, pois o Instituto Butantan tinha o direito de envasar a vacina da Sanofi, mas não produzi-la.

Em 2014, finalmente autorizado pela Anvisa a produzir a vacina, o Ministério da Saúde encomendou a produção de 25 milhões de doses, mas aceitou metade, comprando o resto da Sanofi. Somados representou para o Butantan um prejuízo de cerca de US$ 60 milhões.

O Ministério da Saúde passou uma medida provisória permitindo comprar tecnologia e por cinco anos importar vacinas. Cerca de 90% das vacinas da Bio-Manguinhos são importadas, o que levou o Funed (Fundação Ezequiel Dias) em Minas Gerais a virar mera envasadora da vacina da meningite e levou o Butantan a importar por US$ 200 milhões a vacina de hepatite A, uma infecção que geralmente se cura espontaneamente e sem sequelas.

Os institutos públicos passam a ser intermediários para vender vacinas em imensos volumes, sem licitação. O pequeno grupo que domina o mercado de vacinas impede que o Brasil inove e produza, mantendo o país como colônia. Vale a pena continuar meu esforço de 30 anos?

ISAIAS RAW, 87, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, foi diretor e presidente da Fundação Butantan e por uma década trabalhou no MIT, Escola de Saude Publica da Harvard e no NY City College

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