Folha de S. Paulo


Editorial: Socos na água

O ano de 2014, como assinala a reportagem especial "Líquido e Incerto – O Futuro dos Recursos Hídricos no Brasil", publicada nesta Folha ontem, ficará marcado como aquele em que o país se descobriu vulnerável à água.

O recurso natural é abundante nestas paragens. Estima-se que o território brasileiro, com menos de 3% da população mundial, contenha entre 12% e 16% do estoque de águas superficiais disponíveis.

Fartura, contudo, não garante segurança. Que o digam os habitantes da Grande São Paulo, sujeitos à maior crise de abastecimento da história. Ou os do semiárido nordestino, que saíram de mais uma seca severa (2012-2013).

Nem sempre a água se encontra no local, no momento, na quantidade ou na qualidade adequados para a população. Na Amazônia, é mais comum a abundância causar devastação, como nas enchentes do rio Madeira, onde começaram a operar as hidrelétricas de Santo Antônio (2012) e Jirau (2013).

Nos três casos contemplados pela reportagem, a escassez e o excesso do recurso, que atormentam milhões de pessoas, decorrem de variações imprevistas do sistema do clima, que está intimamente conectado ao ciclo hidrológico.

O motor de ambos é a radiação solar, que aquece áreas terrestres de maneira diferencial e evapora o líquido dos oceanos, gerando correntes de ar, nuvens e chuvas.

Não se pode afirmar com segurança que as secas e enchentes de 2014 sejam já efeito de uma mudança global do clima. Mas não é essa a discussão que importa, e sim saber se a infraestrutura existente no país –e a que se pretende construir nas próximas décadas– está preparada para as novas condições. Segundo os relatos no dossiê "Líquido e Incerto", não estão.

A questão central é de planejamento, e planejamento integrado, precisamente a função de governo que mais se atrofiou no Brasil nas últimas décadas. O Planalto mal consegue tirar do chão as hidrelétricas necessárias para evitar novos apagões, e isso sem levar em conta o risco de que as estiagens se agravem daqui para a frente.

Enquanto isso, a gestão dos recursos hídricos –fator mais vulnerável aos humores do clima– se esvai no desvão entre os ministérios: Meio Ambiente (florestas e conservação), Minas e Energia (geração elétrica), Agricultura (irrigação), Cidades (habitação) etc.

Como diz John Briscoe, especialista da Universidade Harvard que gosta de citar o boxeador Mike Tyson, todo mundo tem um plano –até levar um soco na cara. O Brasil já sentiu o golpe. Resta conhecer o plano dos candidatos a presidente para administrar de modo racional e responsável a água do país.


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